Paulo Coelho's Home page
    Origin: http://www.cyberminas.com.br
    Date: 14 Aug 2003
    ---------------------------------------------------------------




    Ediзгo especial da pбgina www.paulocoelho.com.br , venda proibida






      PREFБCIO



    Й importante dizer alguma coisa sobre o fato de O Alquimista ser um
    livro simbуlico, diferente de O Diбrio de um Mago, que foi um trabalho de
    nгo-ficзгo.
    Durante onze anos de minha vida estudei Alquimia. A simples idйia de
    transformar metais em ouro, ou de descobrir o Elixir da Longa Vida, jб era
    fascinante demais para passar despercebida a qualquer iniciante em Magia.
    Confesso que o Elixir da Longa Vida me seduzia mais: antes de entender e
    sentir a presenзa de Deus, a idйia de que tudo ia acabar um dia era
    desesperadora. De maneira que, ao saber da possibilidade de conseguir um
    lнquido capaz de prolongar por muitos anos minha existкncia, resolvi
    dedicar- me de corpo e alma а sua fabricaзгo.
    Era uma йpoca de grandes transformaзхes sociais ґ o comeзo dos anos
    setenta ґ e nгo havia ainda publicaзхes sйrias a respeito de Alquimia.
    Comecei, como um dos personagens do livro, a gastar o pouco dinheiro que
    tinha na compra de livros importados, e dedicava muitas horas do meu dia ao
    estudo da sua simbologia complicada. Procurei duas ou trкs pessoas no Rio de
    Janeiro que se dedicavam seriamente а Grande Obra, e elas se recusaram a me
    receber. Conheci tambйm muitas outras pessoas que se diziam alquimistas,
    possuнam seus laboratуrios, e prometiam me ensinar os segredos da Arte em
    troca de verdadeiras fortunas; hoje entendo que elas nada sabiam daquilo que
    pretendiam ensinar.
    Mesmo com toda a minha dedicaзгo, os resultados eram absolutamente
    nulos. Nгo acontecia nada do que os manuais de Alquimia afirmavam em sua
    complicada linguagem. Era um sem-fim de sнmbolos, de dragхes, leхes, sуis,
    luas e mercъrios, e eu sempre tinha a impressгo de estar no caminho errado,
    porque a linguagem simbуlica permite uma gigantesca margem de equнvocos. Em
    1973, jб desesperado com a ausкncia de progresso, cometi uma suprema
    irresponsabilidade. Nesta йpoca eu era contratado pela Secretaria de
    Educaзгo de Mato Grosso para dar aulas de teatro naquele estado, e resolvi
    utilizar meus alunos em laboratуrios teatrais que tinham como tema a Tбboa
    da Esmeralda. Esta atitude, aliada a algumas incursхes minhas nas бreas
    pantanosas da Magia, fizeram com que no ano seguinte eu pudesse experimentar
    na prуpria carne a verdade do provйrbio: "Aqui se faz, aqui se paga". Tudo a
    minha volta ruiu por completo.
    Passei os prуximos seis anos de minha vida numa atitude bastante cйtica
    com relaзгo a tudo que dissesse respeito а бrea mнstica. Neste exнlio
    espiritual, aprendi muitas coisas importantes: que sу aceitamos uma verdade
    quando primeira a negamos do fundo da alma, que nгo devemos fugir de nosso
    prуprio destino, e que a mгo de Deus й infinitamente generosa, apesar de Seu
    rigor.
    Em 1981, conheci RAM e o meu Mestre, que iria conduzir-me de volta ao
    caminho que estб traзado para mim. E enquanto ele me treinava em seus
    ensinamentos, voltei a estudar Alquimia por minha prуpria conta. Certa
    noite, enquanto conversбvamos depois de uma exaustiva sessгo de telepatia,
    perguntei porque a linguagem dos alquimistas era tгo vaga e tгo complicada.
    ґ Existem trкs tipos de alquimistas ґ disse meu Mestre. ґ Aqueles que
    sгo vagos porque nгo sabem o que estгo falando; aqueles que sгo vagos porque
    sabem o que estгo falando, mas sabem tambйm que a linguagem da Alquimia й
    uma linguagem dirigida ao coraзгo, e nгo а razгo.


    ґ E qual o terceiro tipo? ґ perguntei.
    ґ Aqueles que jamais ouviram falar em Alquimia, mas que conseguiram,
    atravйs de suas vidas, descobrir a Pedra Filosofal.
    E com isto, meu Mestre ґ que pertencia ao segundo tipo ґ resolveu me
    dar aulas de Alquimia. Descobri que a linguagem simbуlica, que tanto me
    irritava e me desnorteava, era a ъnica maneira de se atingir a Alma do
    Mundo, ou o que Jung chamou de "inconsciente coletivo". Descobri a Lenda
    Pessoal, e os Sinais de Deus, verdades que meu raciocнnio intelectual se
    recusava a aceitar por causa de sua simplicidade. Descobri que atingir a
    Grande Obra nгo й tarefa de poucos, mas de todos os seres humanos sobre a
    face da Terra. Й claro que nem sempre a Grande Obra vem sob a forma de um
    ovo e de um frasco com lнquido, mas todos nуs podemos ґ sem qualquer sombra
    de dъvida ґ mergulhar na Alma do Mundo.
    Por isso, "O Alquimista" й tambйm um texto simbуlico. No decorrer de
    suas pбginas, alйm de transmitir tudo o que aprendi a respeito, procuro
    homenagear grandes escritores que conseguiram atingir a Linguagem Universal:
    Hemingway, Blake, Borges (que tambйm utilizou a histуria persa para um de
    seus contos), Malba Tahan, entre outros.

    Para completar este extenso prefбcio, e ilustrar o que meu Mestre
    queria dizer com o terceiro tipo de alquimistas, vale a pena recordar uma
    histуria que ele mesmo me contou no seu laboratуrio.
    Nossa Senhora, com o Menino Jesus em seus braзos, resolveu descer а
    Terra e visitar um mosteiro. Orgulhosos, todos os padres fizeram uma grande
    fila, e cada um chegava diante da Virgem para prestar sua homenagem. Um
    declamou belos poemas, outro mostrou suas iluminuras para a Bнblia, um
    terceiro disse o nome de todos os santos. E assim por diante, monge apуs
    monge, homenageou Nossa Senhora e o Menino Jesus.
    No ъltimo lugar da fila, havia um padre, o mais humilde do convento,
    que nunca havia aprendido os sбbios textos da йpoca. Seus pais eram pessoas
    simples, que trabalhavam num velho circo das redondezas, e tudo que lhe
    haviam ensinado era atirar bolas para cima e fazer alguns malabarismos.
    Quando chegou sua vez, os outros padres quiseram encerrar as
    homenagens, porque o antigo malabarista nгo tinha nada de importante para
    dizer, e podia desmoralizar a imagem do convento. Entretanto, no fundo do
    seu coraзгo, tambйm ele sentia uma imensa necessidade de dar alguma coisa de
    si para Jesus e a Virgem.
    Envergonhado, sentindo o olhar reprovador de seus irmгos, ele tirou
    algumas laranjas do bolso e comeзou a jogб-las para cima, fazendo
    malabarismos, que era a ъnica coisa que sabia fazer.
    Foi sу neste instante que o Menino Jesus sorriu, e comeзou a bater
    palmas no colo de Nossa Senhora. E foi para ele que a Virgem estendeu os
    braзos, deixando que segurasse um pouco o menino.

      O AUTOR












    Para J.
    Alquimista que conhece e utiliza os segredos da Grande Obra.







    Indo eles pelo caminho, entraram em um certo povoado. E certa mulher,
    chamada Marta, hospedou-o na sua casa.
    Tinha ela uma irmг, chamada Maria, que sentou-se aos pйs do Senhor, e
    ficou ouvindo seus ensinamentos.
    Marta agitava-se de um lado para o outro, ocupada em muitos serviзos.
    Entгo aproximou-se de Jesus e disse: ґ Senhor! Nгo te importas de que
    eu fique a servir sozinha? Ordena a minha
    irmг que venha ajudar-me!
    Respondeu-lhe o Senhor:
    ґ Marta! Marta! Andas inquieta e te preocupas com muitas coisas.
    "Maria, entretanto, escolheu a melhor parte, e esta nгo lhe serб
    tirada."

      LUCAS, 10; 38-42






      PRУLOGO



    O Alquimista pegou um livro que alguйm na caravana havia trazido. O
    volume estava sem capa, mas conseguiu identificar seu autor: Oscar Wilde.
    Enquanto folheava suas pбginas, encontrou uma histуria sobre Narciso.
    O Alquimista conhecia a lenda de Narciso, um belo rapaz que todos os
    dias ia contemplar sua prуpria beleza num lago. Era tгo fascinado por si
    mesmo que certo dia caiu dentro do lago e morreu afogado. No lugar onde
    caiu, nasceu uma flor, que chamaram de narciso.
    Mas nгo era assim que Oscar Wilde acabava a histуria.
    Ele dizia que quando Narciso morreu, vieram as Orйiades ґ deusas do
    bosque ґ e viram o lago transformado, de um lago de бgua doce, num cвntaro
    de lбgrimas salgadas.
    ґ Por que vocк chora? ґ perguntaram as Orйiades.
    ґ Choro por Narciso ґ disse o lago
    ґ Ah, nгo nos espanta que vocк chore por Narciso ґ continuaram elas. ґ
    Afinal de contas, apesar de todas nуs sempre corrermos atrбs dele pelo
    bosque, vocк era o ъnico que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua
    beleza.
    ґ Mas Narciso era belo? ґ perguntou o lago.
    ґ Quem mais do que vocк poderia saber disso? ґ responderam, surpresas,
    as Orйiades.
    ґ Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruзava todos os
    dias.
    O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:
    ґ Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que Narciso era
    belo.
    "Choro por Narciso porque, todas as vezes que ele se deitava sobre
    minhas margens eu podia ver, no fundo dos seus olhos, minha prуpria beleza
    refletida".

    "Que bela histуria", disse o Alquimista.





    O rapaz chamava-se Santiago. Estava comeзando a escurecer quando chegou
    com seu rebanho diante de uma velha igreja abandonada. O teto tinha
    despencado hб muito tempo, e um enorme sicфmoro havia crescido no local que
    antes abrigava a sacristia.
    Resolveu passar a noite ali. Fez com que todas as ovelhas entrassem
    pela porta em ruнnas, e entгo colocou algumas tбbuas de modo que elas nгo
    pudessem fugir durante a noite. Nгo haviam lobos naquela regiгo, mas certa
    vez um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo o dia
    seguinte procurando a ovelha desgarrada.
    Forrou o chгo com seu casaco e deitou-se, usando o livro que acabara de
    ler como travesseiro. Lembrou-se, antes de dormir, que precisava comeзar a
    ler livros mais grossos: demoravam mais para acabar e eram travesseiros mais
    confortбveis durante a noite.
    Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as
    estrelas brilhavam atravйs do teto semidestruнdo.
    "Queria dormir um pouco mais", pensou ele. Tivera o mesmo sonho da
    semana passada, e outra vez acordara antes do final.
    Levantou-se e tomou um gole de vinho. Depois pegou o cajado e comeзou a
    acordar as ovelhas que ainda dormiam. Ele havia reparado que, assim que
    acordava, a maior parte dos animais tambйm comeзava a despertar. Como se
    houvesse alguma misteriosa energia unindo sua vida а vida daquelas ovelhas
    que hб dois anos percorriam com ele a terra, em busca de бgua e alimento.
    "Elas jб se acostumaram tanto a mim que conhecem meus horбrios", disse em
    voz baixa. Refletiu um momento, e pensou que podia ser tambйm o contrбrio:
    ele que havia se acostumado ao horбrio das ovelhas.
    Haviam certas ovelhas, porйm, que demoravam um pouco mais para
    levantar. O rapaz acordou uma a uma com seu cajado, chamando cada qual pelo
    seu nome. Sempre acreditara que as ovelhas eram capazes de entender o que
    ele falava. Por isso costumava аs vezes ler para elas os trechos de livros
    que o haviam impressionado, ou falar da solidгo e da alegria de um pastor no
    campo, ou comentar sobre as ъltimas novidades que via nas cidades por onde
    costumava passar.
    Nos ъltimos dois dias, porйm, seu assunto tinha sido praticamente um
    sу: a menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar
    daqui a quatro dias. Tinha estado apenas uma vez lб, no ano anterior. O
    comerciante era dono de uma loja de tecidos, e gostava sempre de ver as
    ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsificaзхes. Um certo amigo
    tinha indicado a loja, e o pastor levou lб suas ovelhas.






    "Preciso vender alguma lг", disse para o comerciante.
    A loja do homem estava cheia, e o comerciante pediu que o pastor
    esperasse atй o entardecer. Ele sentou-se na calзada da loja e tirou um
    livro do alforje.
    ґ Nгo sabia que os pastores sгo capazes de ler livros ґ disse uma voz
    feminina ao seu lado.


    Era uma moзa tнpica da regiгo de Andaluzia, com seus cabelos negros
    escorridos, e os olhos que lembravam vagamente os antigos conquistadores
    mouros.
    ґ Й porque as ovelhas ensinam mais que os livros ґ respondeu o rapaz.
    Ficaram conversando por mais de duas horas. Ela contou que era filha do
    comerciante, e falou da vida na aldeia, onde cada dia era igual ao outro. O
    pastor contou dos campos de Andaluzia, das ъltimas novidades que viu nas
    cidades onde visitara. Estava contente por nгo precisar conversar sempre com
    as ovelhas.
    ґ Como aprendeu a ler? ґ perguntou a moзa a certa altura.
    ґ Como todas as outras pessoas ґ respondeu o rapaz. ґ Na escola.
    ґ E, se sabe ler, entгo por que й apenas um pastor?
    O rapaz deu uma desculpa qualquer para nгo responder aquela pergunta.
    Ele tinha certeza de que a moзa jamais entenderia. Continuou a contar suas
    histуrias de viagem, e os pequenos olhos mouros abriam-se e fechavam-se de
    espanto e surpresa. А medida que o tempo foi passando, o rapaz comeзou a
    desejar que aquele dia nгo acabasse nunca, que o pai da moзa ficasse ocupado
    por muito tempo e o mandasse esperar por trкs dias. Percebeu que estava
    sentindo uma coisa que nunca havia sentido antes: vontade de ficar morando
    numa mesma cidade para sempre. Com a menina de cabelos negros, os dias nunca
    seriam iguais.
    Mas o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro
    ovelhas. Depois, pagou-lhe o que era devido, e pediu que voltasse no ano
    seguinte.





    Agora faltavam apenas quatro dias para chegar de novo а mesma aldeia.
    Estava excitado e ao mesmo tempo inseguro: talvez a menina jб tivesse
    esquecido. Por ali passavam muitos pastores para vender lг.
    ґ Nгo tem importвncia ґ disse o rapaz para as suas ovelhas. ґ Eu tambйm
    conheзo outras meninas em outras cidades.
    Mas no fundo do seu coraзгo, ele sabia que tinha importвncia. E que
    tanto os pastores, como os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre
    conheciam uma cidade onde havia alguйm capaz de fazer com que esquecessem a
    alegria de viajar solto pelo mundo.






    O dia comeзou a raiar e o pastor colocou as ovelhas seguindo em direзгo
    ao sol. "Elas nunca precisam tomar uma decisгo", pensou ele. "Talvez por
    isso fiquem sempre juntos de mim". A ъnica necessidade que as ovelhas
    sentiam era de бgua e de alimento. Enquanto o rapaz conhecesse os melhores
    pastos em Andaluzia, elas seriam sempre suas amigas. Mesmo que os dias
    fossem todos iguais, com longas horas se arrastando entre o nascer e o
    pфr-do-sol; mesmo que elas jamais tivessem lido um sу livro em suas curtas
    vidas, e nгo conhecessem a lнngua dos homens que contavam as novidades nas
    aldeias. Elas estavam contentes com бgua e alimento, e isto bastava. Em
    troca, ofereciam generosamente sua lг, sua companhia, e ґ de vez em quando ґ
    sua carne.
    "Se hoje eu me tornasse um monstro e resolvesse matar uma por uma, elas
    sу iam perceber depois que quase todo o rebanho tivesse sido exterminado",
    pensou o rapaz. "Porque confiam em mim, e se esqueceram de confiar nos seus
    prуprios instintos. Sу porque as conduzo ao alimento e а comida".
    O rapaz comeзou a estranhar seus prуprios pensamentos. Talvez a igreja,
    com aquele sicфmoro crescendo dentro, fosse mal-assombrada. Tinha feito com
    que sonhasse um mesmo sonho pela segunda vez, e estava lhe dando uma
    sensaзгo de raiva contra suas companheiras, sempre tгo fiйis. Bebeu um pouco
    de vinho que havia sobrado do jantar na noite anterior, e apertou contra o
    corpo o seu casaco. Ele sabia que daqui a algumas horas, com o sol a pino, o
    calor seria tгo forte que nгo ia poder
    conduzir as ovelhas pelo campo. Era a hora que toda a Espanha dormia no
    verгo. O calor durava atй a noite, e durante todo este tempo ele tinha que
    ficar carregando o casaco. Entretanto, quando pensava em reclamar do peso,
    sempre lembrava que por causa dele nгo havia sentido frio de manhг.
    "Temos que estar sempre preparados para as surpresas do tempo", pensava
    entгo ele, e sentia-se grato pelo peso do casaco.
    O casaco tinha um motivo, e o rapaz tambйm. Em dois anos pelas
    planнcies de Andaluzia ele jб sabia de cor todas as cidades da regiгo, e
    esta era a grande razгo de sua vida; viajar. Estava planejando explicar
    desta vez а menina porque um simples pastor sabe ler: havia estado atй os
    dezesseis anos num seminбrio. Seus pais queriam que ele fosse padre, e
    motivo de orgulho para uma simples famнlia camponesa, que trabalhava apenas
    para comida e бgua, como suas ovelhas. Estudou latim, espanhol, e teologia.
    Mas desde crianзa sonhava em conhecer o mundo, e isto era muito mais
    importante do que conhecer Deus ou os pecados dos homens. Certa tarde, ao
    visitar a famнlia, havia tomado coragem e dito para seu pai que nгo queria
    ser padre. Queria viajar.




    ґ Homens de todo o mundo jб passaram por esta aldeia, filho ґ disse o
    pai. ґ Vкm em busca de coisas novas, mas continuam as mesmas pessoas. Vгo
    atй o morro conhecer o castelo e acham que o passado era melhor que o
    presente. Tкm cabelos louros ou pele escura, mas sгo iguais aos homens de
    nossa aldeia.
    ґ Mas nгo conheзo os castelos das terras de onde eles vкm ґ retrucou o
    rapaz.
    ґ Estes homens, quando conhecem nossos campos e nossas mulheres, dizem
    que gostariam de viver para sempre aqui ґ continuou o pai.
    ґ Quero conhecer as mulheres e as terras de onde eles vieram ґ disse o
    rapaz. ґ Porque eles nunca ficam por aqui.
    ґ Os homens trazem a bolsa cheia de dinheiro ґ disse mais uma vez o
    pai. ґ Entre nуs, sу os pastores viajam.
    ґ Entгo serei pastor.
    O pai nгo disse mais nada. No dia seguinte deu-lhe uma bolsa com trкs
    antigas moedas de ouro espanholas.
    ґ Achei certo dia no campo. Iam ser da Igreja, como seu dote. Compre
    seu rebanho e corra o mundo atй aprender que nosso castelo й o mais
    importante, e nossas mulheres sгo as mais belas.
    E o abenзoou. Nos olhos do pai ele leu tambйm a vontade de correr o
    mundo. Uma vontade que ainda vivia, apesar das dezenas de anos que ele a
    tentou sepultar com бgua, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite.






    O horizonte se tingiu de vermelho, e depois apareceu o sol. O rapaz
    lembrou-se da conversa com o pai e sentiu-se alegre; tinha jб conhecido
    muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual аquela que o esperava
    em dois dias). Tinha um casaco, um livro que podia trocar por outro, e um
    rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, й que todo dia realizava
    o grande sonho de sua vida; viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia,
    podia vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando cansasse do mar,
    teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades de ser
    feliz.
    "Nгo sei como buscam Deus no seminбrio", pensou, enquanto olhava o sol
    que nascia. Sempre que possнvel, buscava um caminho diferente para andar.
    Nunca havia estado naquela igreja antes, apesar de haver passado tantas
    vezes por ali. O mundo era grande e inesgotбvel, e se ele deixasse que as
    ovelhas o guiassem apenas um pouquinho, ia terminar descobrindo mais coisas
    interessantes. "O problema й que elas nгo se dгo conta de que estгo fazendo
    caminhos novos cada dia. Nгo percebem que os pastos mudaram, que as estaзхes
    sгo diferentes ґ porque estгo apenas ocupadas com бgua e comida."
    "Talvez seja assim com todos nуs" ґ pensou o pastor. "Mesmo comigo, que
    nгo penso em outras mulheres desde que conheci a filha do comerciante".
    Olhou o cйu, e pelos seus cбlculos estaria antes do almoзo em Tarifa. Lб
    poderia trocar seu livro por um volume mais grosso, encher a garrafa de
    vinho, e fazer a barba e o cabelo; tinha que estar pronto para encontrar a
    menina, e nгo queria pensar na possibilidade de outro pastor ter chegado
    antes dele, com mais ovelhas, para pedir sua mгo.
    "Й justamente a possibilidade de realizar um sonho que torna a vida
    interessante", refletiu enquanto olhava novamente o cйu e apressava o passo.
    Tinha acabado de se lembrar que em Tarifa morava uma velha capaz de
    interpretar sonhos. E ele tinha tido um sonho repetido aquela noite.




    A velha conduziu o rapaz atй um quarto no fundo da casa, separado da
    sala por uma cortina feita de tiras de plбstico colorido. Lб dentro tinha
    uma mesa, uma imagem do Sagrado Coraзгo de Jesus, e duas cadeiras.
    A velha sentou-se e pediu que ele fizesse o mesmo. Depois segurou as
    duas mгos do rapaz e rezou baixo.
    Parecia uma reza cigana. O rapaz jб havia encontrado muitos ciganos
    pelo caminho; eles viajavam e entretanto nгo cuidavam de ovelhas. As pessoas
    diziam que a vida de um cigano era sempre enganar aos outros. Diziam tambйm
    que eles tinham pacto com demфnios, e que raptavam crianзas para servirem de
    escravas em seus misteriosos acampamentos. Quando era pequeno, o rapaz
    sempre tinha morrido de medo de ser raptado pelos ciganos, e este temor
    antigo voltou enquanto a velha segurava suas mгos.
    "Mas existe a imagem do Sagrado Coraзгo de Jesus", pensou ele,
    procurando ficar mais calmo. Nгo queria que sua mгo comeзasse a tremer e a
    velha percebesse seu medo . Rezou um pai-nosso em silкncio.
    ґ Que interessante ґ disse a velha, sem tirar os olhos da mгo do rapaz.
    E voltou a ficar quieta.
    O rapaz estava ficando nervoso. Suas mгos comeзaram involuntariamente a
    tremer, e a velha percebeu. Ele puxou as mгos rapidamente.
    ґ Nгo vim aqui para ler as mгos ґ disse, jб arrependido de ter entrado
    naquela casa. Pensou por um momento que era melhor pagar a consulta e ir-se
    embora sem saber de nada. Estava dando importвncia demais a um sonho
    repetido.
    ґ Vocк veio saber de sonhos ґ respondeu a velha. ґ E os sonhos sгo a
    linguagem de Deus. Quando ele fala a linguagem do mundo, eu posso
    interpretar. Mas se ele falar a linguagem de sua alma, sу vocк pode
    entender. E vou cobrar a consulta de qualquer maneira.
    Mais um truque, pensou o rapaz. Entretanto, resolveu arriscar. Um
    pastor corre sempre o risco dos lobos ou da seca, e isto й que faz a
    profissгo de pastor mais excitante.
    ґ Tive o mesmo sonho duas vezes seguidas ґ disse. ґ Sonhei que estava
    num pasto com minhas ovelhas quando aparecia uma crianзa, e comeзava a
    brincar com os animais. Nгo gosto que mexam nas minhas ovelhas, elas ficam
    com medo de estranhos. Mas as crianзas sempre conseguem mexer com os animais
    sem que eles se assustem. Nгo sei porquк. Nгo sei como os animais sabem a
    idade dos seres humanos.
    ґ Volte para seu sonho ґ disse a velha. ґ Tenho uma panela no fogo.
    Alйm disso vocк tem pouco dinheiro e nгo pode tomar todo o meu tempo.
    ґ A crianзa continuava a brincar com as ovelhas por algum tempo ґ
    continuou o rapaz, um pouco constrangido. ґ E de repente, me pegava pelas
    mгos e me levava atй as Pirвmides do Egito.
    O rapaz esperou um pouco para ver se a velha sabia o que eram as
    Pirвmides do Egito. Mas a velha continuou quieta.
    ґ Entгo, nas Pirвmides do Egito, ґ ele falou as trкs ъltimas palavras
    lentamente, para que a velha pudesse entender bem ґ a crianзa me dizia: "se
    vocк vier atй aqui, vai encontrar um tesouro escondido". E quando ela foi me
    mostrar o local exato, eu acordei. Nas duas vezes.


    A velha continuou em silкncio por algum tempo. Depois tornou a pegar as
    mгos do rapaz e estudб-las atentamente.
    ґ Nгo vou lhe cobrar nada agora ґ disse a velha. Mas quero um dйcimo do
    tesouro, se vocк encontrб-lo.
    O rapaz riu. De felicidade. Entгo iria economizar o pouco dinheiro que
    tinha, por causa de um sonho que falava em tesouros escondidos! A velha
    devia ser mesmo uma cigana ґ os ciganos sгo burros.
    ґ Entгo interprete o sonho ґ pediu o rapaz.
    ґ Antes jure. Jure que vocк vai me dar a dйcima parte do seu tesouro em
    troca do que eu lhe disser.
    O rapaz jurou. A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando
    para a imagem do Sagrado Coraзгo de Jesus.
    ґ Й um sonho da Linguagem do Mundo ґ disse ela. ґ Posso interpretб-lo,
    e й uma interpretaзгo muito difнcil. Por isso acho que mereзo minha parte no
    seu achado.
    "E a interpretaзгo й esta: vocк deve ir atй as Pirвmides do Egito.
    Nunca ouvi falar delas, mas se foi uma crianзa que lhe mostrou, й porque
    existem. Lб vocк encontrarб um tesouro que lhe farб rico".
    O rapaz ficou surpreso, e depois irritado. Nгo precisava ter procurado
    a velha para isto.
    Finalmente lembrou-se de que nгo estava pagando nada.
    ґ Para isto eu nгo precisava perder meu tempo ґ disse.
    ґ Por isso lhe falei que seu sonho era difнcil. As coisas simples sгo
    as mais extraordinбrias, e sу os sбbios conseguem vк-las. Jб que nгo sou uma
    sбbia, tenho que conhecer outras artes, como a leitura de mгos.
    ґ E como eu vou chegar atй o Egito?
    ґ Eu sу interpreto sonhos. Nгo sei transformб-los em realidade. Por
    isso tenho que viver do que minhas filhas me dгo.
    ґ E se eu nгo chegar atй o Egito?
    ґ Eu fico sem pagamento. Nгo serб a primeira vez.
    E a velha nгo disse mais nada. Pediu para que o rapaz saнsse, pois jб
    tinha perdido muito tempo com ele.




    O rapaz saiu decepcionado e decidido a nunca mais acreditar em sonhos.
    Lembrou-se de que tinha vбrias providкncias a tomar: foi ao armazйm arranjar
    alguma comida, trocou seu livro por um livro mais grosso, e sentou-se num
    banco da praзa para saborear o vinho novo que havia comprado. Era um dia
    quente, e o vinho, por um destes mistйrios insondбveis, conseguia resfriar
    um pouco seu corpo. As ovelhas estavam na entrada da cidade, no estбbulo de
    um novo amigo seu. Conhecia muita gente por aquelas bandas ґ e por isso
    gostava de viajar. A gente sempre acaba fazendo amigos novos, e nгo precisa
    ficar com eles dia apуs dia. Quando a gente vк sempre as mesmas pessoas ґ e
    isto acontecia no seminбrio ґ terminamos fazendo com que elas passem a fazer
    parte de nossas vidas. E como elas fazem parte de nossas vidas, passam
    tambйm a querer modificar nossas vidas. Se a gente nгo for como elas esperam
    ficar, chateadas. Porque todas as pessoas tem a noзгo exata de como devemos
    viver nossa vida.
    E nunca tкm noзгo de como devem viver as suas prуprias vidas. Como a
    mulher dos sonhos, que nгo sabia transformб-los em realidade.
    Resolveu esperar o sol descer um pouco, antes de seguir com suas
    ovelhas em direзгo ao campo. Daqui a trкs dias iria estar com a filha do
    comerciante.
    Comeзou a ler o livro que tinha conseguido com o padre de Tarifa. Era
    um livro grosso, que falava de um enterro logo na primeira pбgina. Alйm
    disso, o nome dos personagens eram complicadнssimos. Se algum dia escrevesse
    um livro, pensou ele, ia colocar um personagem aparecendo de cada vez, para
    que os leitores nгo tivessem que ficar decorando nomes.
    Quando conseguiu concentrar-se um pouco na leitura, ґ e era boa, porque
    falava de um enterro na neve, o que lhe transmitia uma sensaзгo de frio
    debaixo daquele imenso sol ґ um velho sentou-se ao seu lado e comeзou a
    puxar conversa.
    ґ O que eles estгo fazendo? ґ perguntou o velho, apontando para as
    pessoas da praзa.
    ґ Trabalhando ґ respondeu o rapaz, secamente, e voltou a fingir que
    estava concentrado na leitura. Na verdade, estava pensando em tosquiar as
    ovelhas na frente da filha do comerciante, para ela atestar como ele era
    capaz de fazer coisas interessantes. Jб havia imaginado esta cena uma porзгo
    de vezes; em todas elas, a menina ficava deslumbrada quando ele comeзava a
    lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trбs para frente. Tambйm
    tentava se lembrar de algumas boas histуrias para contar a ela enquanto
    tosquiava as ovelhas. A maior parte ele tinha lido nos livros, mas iria
    contar como se tivesse vivido pessoalmente. Ela nunca ia saber a diferenзa,
    porque nгo sabia ler livros.
    O velho, entretanto, insistiu. Falou que estava cansado, com sede, e
    pediu um gole de vinho ao rapaz. O rapaz ofereceu sua garrafa; talvez o
    velho ficasse quieto.
    Mas o velho queria conversar de qualquer maneira. Perguntou que livro o
    rapaz estava lendo. Ele pensou em ser rude e mudar de banco, mas seu pai
    havia lhe ensinado o respeito pelos mais velhos. Entгo estendeu o livro para
    o velho, por duas razхes: a primeira й que nгo sabia pronunciar o tнtulo. E
    a segunda era que, se o velho nгo soubesse ler, ia ele mesmo mudar de banco
    para nгo sentir-se humilhado.
    ґ Humm... ґ disse o velho, olhando o volume por todos os lados, como se
    fosse um objeto estranho. ґ Й um livro importante, mas й muito chato.
    O rapaz ficou surpreso. O velho tambйm lia, e jб lera aquele livro. E
    se o livro era chato como ele dizia, ainda dava tempo de trocar por outro.


    ґ Й um livro que fala o que quase todos os livros falam ґ continuou o
    velho. ґ Da incapacidade que as pessoas tкm de escolher seu prуprio destino.
    E termina fazendo com que todo mundo acredite na maior mentira do mundo.


    ґ Qual й a maior mentira do mundo? ґ indagou surpreso o rapaz.
    ґ Й esta: em determinado momento de nossa existкncia, perdemos o
    controle de nossas vidas, e ela passa a ser governada pelo destino. Esta й a
    maior mentira do mundo.
    ґ Comigo nгo aconteceu isto ґ disse o rapaz. ґ Queriam que eu fosse
    padre, e eu resolvi ser pastor.
    ґ Assim й melhor ґ disse o velho. ґ Porque vocк gosta de viajar.
    "Ele adivinhou meu pensamento", refletiu o rapaz. O velho, entretanto,
    folheava o livro grosso, sem a menor intenзгo de devolvк-lo. O rapaz notou
    que ele vestia uma roupa estranha; parecia um бrabe, o que nгo era raro
    naquela regiгo. A Бfrica ficava a apenas algumas horas da Tarifa; e era sу
    cruzar o pequeno estreito num barco. Muitas vezes apareciam бrabes na
    cidade, fazendo compras e rezando oraзхes estranhas vбrias vezes por dia.
    ґ De onde й o senhor? ґ perguntou.
    ґ De muitas partes.
    ґ Ninguйm pode ser de muitas partes ґ o rapaz falou. ґ Eu sou um pastor
    e estou em muitas partes, mas sou de um ъnico lugar, de uma cidade perto de
    um castelo antigo. Ali foi onde nasci.
    ґ Entгo podemos dizer que eu nasci em Salйm.
    ґ O rapaz nгo sabia onde era Salйm, mas nгo quis perguntar para nгo
    sentir- se humilhado com a prуpria ignorвncia. Ficou mais algum tempo
    olhando a praзa. As pessoas iam e vinham, e pareciam muito ocupadas.
    ґ Como estб Salйm? ґ perguntou o rapaz, procurando alguma pista.
    ґ Como sempre esteve.
    Ainda nгo era uma pista. Mas sabia que Salйm nгo estava em Andaluzia.
    Senгo, ele jб a teria conhecido.
    ґ E o que vocк faz em Salйm? ґ insistiu.
    ґ O que faзo em Salйm? ґ o velho pela primeira vez deu uma gostosa
    gargalhada. ґ Ora, eu sou o Rei de Salйm!
    As pessoas dizem coisas muito estranhas, pensou o rapaz. Аs vezes й
    melhor estar com as ovelhas, que sгo caladas, e apenas procuram alimento e
    бgua. Ou й melhor estar com os livros, que contam estуrias incrнveis sempre
    nas horas que a gente quer ouvir. Mas quando a gente fala com pessoas, elas
    dizem certas coisas e ficamos sem saber como continuar a conversa.
    ґ Meu nome й Melquisedec ґ disse o velho. ґ Quantas ovelhas vocк tem?
    ґ O suficiente ґ respondeu o rapaz. O velho estava querendo saber
    demais sobre sua vida.
    ґ Entгo estamos diante de um problema. Nгo posso ajudб-lo enquanto vocк
    achar que tem ovelhas suficientes.
    O rapaz se irritou. Nгo estava pedindo ajuda. O velho й que tinha
    pedido vinho, conversa, e livro.
    ґ Me devolva o livro ґ disse. ґ Tenho que ir buscar minhas ovelhas e
    seguir adiante.


    ґ Me dк um dйcimo de suas ovelhas ґ disse o velho. ґ E eu lhe ensino
    como chegar atй o tesouro escondido.

    O rapaz tornou entгo a lembrar-se do sonho, e de repente tudo ficou
    claro. A velha nгo tinha cobrado nada, mas o velho ґ que era talvez seu
    marido ґ ia conseguir arrancar muito mais dinheiro em troca de uma
    informaзгo que nгo existia. O velho devia ser cigano tambйm.
    Antes que o rapaz dissesse qualquer coisa, porйm, o velho abaixou-se,
    pegou um graveto, e comeзou a escrever na areia da praзa. Quando ele se
    abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que
    quase cegou o rapaz. Mas num movimento rбpido demais para alguйm de sua
    idade, tornou a cobrir o brilho com o manto. Os olhos do rapaz voltaram ao
    normal e ele pode enxergar o que o velho estava escrevendo.
    Na areia da praзa principal da pequena cidade, ele leu o nome do seu
    pai e de sua mгe.
    Leu a histуria de sua vida atй aquele momento, as brincadeiras de
    infвncia, as noites frias do seminбrio. Leu o nome da filha do comerciante,
    que nгo sabia. Leu coisas que jamais contara para alguйm, como o dia em que
    roubou a arma do seu pai para matar veados, ou sua primeira e solitбria
    experiкncia sexual.





    "Sou o Rei de Salйm", dissera o velho.
    ґ Por que um rei conversa com um pastor? ґ perguntou o rapaz,
    envergonhado e admiradнssimo.
    ґ Existem vбrias razхes. Mas vamos dizer que a mais importante й que
    vocк tem sido capaz de cumprir sua Lenda Pessoal.
    O rapaz nгo sabia o que era Lenda Pessoal.
    ґ Й aquilo que vocк sempre desejou fazer. Todas as pessoas, no comeзo
    da juventude, sabem qual й sua Lenda Pessoal.
    "Nesta altura da vida, tudo й claro, tudo й possнvel, e elas nгo tкm
    medo de sonhar e desejar tudo aquilo que gostariam de ver fazer em suas
    vidas. Entretanto, а medida em que o tempo vai passando, uma misteriosa
    forзa comeзa a tentar provar que й impossнvel realizar a Lenda Pessoal.
    O que o velho estava dizendo nгo fazia muito sentido para o rapaz. Mas
    ele queria saber o que eram "forзas misteriosas"; a filha do comerciante ia
    ficar boquiaberta com isto.
    ґ Sгo as forзas que parecem ruins, mas na verdade estгo ensinando a
    vocк como realizar sua Lenda Pessoal. Estгo preparando seu espнrito e sua
    vontade, porque existe uma grande verdade neste planeta: seja vocк quem for
    ou o que faзa, quando quer com vontade alguma coisa, й porque este desejo
    nasceu na alma do Universo. Й sua missгo na Terra.
    ґ Mesmo que seja apenas viajar? Ou casar com a filha de um comerciante
    de tecidos?
    ґ Ou buscar um tesouro. A Alma do Mundo й alimentada pela felicidade
    das pessoas. Ou pela infelicidade, inveja, ciъme. Cumprir sua Lenda Pessoal
    й a ъnica obrigaзгo dos homens. Tudo й uma coisa sу.
    "E quando vocк quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que
    vocк realize seu desejo".

    Durante algum tempo ficaram em silкncio, olhando a praзa e as pessoas.
    Foi o velho quem falou primeiro.
    ґ Por que vocк cuida de ovelhas?
    ґ Porque gosto de viajar.
    Ele apontou um pipoqueiro, com sua carrocinha vermelha, que estava num
    canto da praзa.
    ґ Aquele pipoqueiro tambйm sempre desejou viajar, quando crianзa. Mas
    preferiu comprar uma carrocinha de pipoca, juntar dinheiro durante anos.
    Quando estiver velho, vai passar um mкs na Бfrica. Jamais entendeu que a
    gente sempre tem condiзхes para fazer o que sonha.
    ґ Devia ter escolhido ser um pastor ґ pensou em voz alta o rapaz.
    ґ Ele pensou nisto ґ disse o velho. ґ Mas os pipoqueiros sгo mais
    importantes que os pastores. Os pipoqueiros tкm uma casa, enquanto os
    pastores dormem ao relento. As pessoas preferem casar suas filhas com
    pipoqueiros do que com pastores.
    O rapaz sentiu uma pontada no coraзгo, pensando na filha do
    comerciante. Em sua cidade devia haver um pipoqueiro.


    ґ Enfim, o que as pessoas pensam sobre pipoqueiros e sobre pastores
    passa a ser mais importante para elas que a Lenda Pessoal.
    O velho folheou o livro, e distraiu-se lendo uma pбgina. O rapaz
    esperou um pouco, e o interrompeu da mesma maneira como ele o havia
    interrompido.
    ґ Por que vocк fala estas coisas comigo?
    ґ Porque vocк tenta viver sua Lenda Pessoal. E estб a ponto de desistir
    dela.
    ґ E vocк aparece sempre nestas horas?
    ґ Nem sempre desta forma, mas jamais deixei de aparecer. Аs vezes
    apareзo sob a forma de uma boa saнda, uma boa idйia. Outras vezes, num
    momento crucial, faзo as coisas ficarem mais fбceis. E assim por diante; mas
    a maior parte das pessoas nгo nota isto.
    O velho contou que na semana passada ele tinha sido forзado a aparecer
    para um garimpeiro sob a forma de uma pedra. O garimpeiro tinha largado tudo
    para ir em busca de esmeraldas. Durante cinco anos trabalhou num rio, e
    tinha quebrado 999.999 pedras em busca de uma esmeralda. Neste ponto o
    garimpeiro pensou em desistir, e sу faltava uma pedra ґ apenas UMA PEDRA ґ
    para ele descobrir sua esmeralda. Como ele tinha sido um homem que havia
    apostado em sua Lenda Pessoal, o velho resolveu interferir. Transformou-se
    numa pedra que rolou sobre o pй do garimpeiro. Este, com a raiva e
    frustraзгo dos cinco anos perdidos, atirou a pedra longe. Mas atirou com
    tanta forзa que ela bateu em outra pedra e esta se quebrou, mostrando a mais
    bela esmeralda do mundo.
    ґ As pessoas aprendem muito cedo sua razгo de viver ґ disse o velho com
    uma certa amargura nos olhos. ґ Talvez seja por isso que elas desistem tгo
    cedo tambйm. Mas assim й o mundo.
    Entгo o rapaz se lembrou que a conversa havia comeзado com o tesouro
    escondido.
    ґ Os tesouros sгo levantados da terra pela torrente de бgua, e
    enterrados por estas mesmas enchentes ґ disse o velho. ґ Se vocк quiser
    saber sobre seu tesouro, terб que me ceder um dйcimo de suas ovelhas.
    ґ E nгo serve um dйcimo do tesouro?
    O velho ficou decepcionado.
    ґ Se vocк sair prometendo o que ainda nгo tem, vai perder sua vontade
    de consegui-lo.
    O rapaz entгo contou que tinha prometido um dйcimo а cigana.
    ґ Os ciganos sгo espertos ґ suspirou o velho. ґ De qualquer maneira й
    bom vocк aprender que tudo na vida tem um preзo. Й isto que os Guerreiros da
    Luz tentam ensinar.
    O velho devolveu o livro ao rapaz.
    ґ Amanhг, nesta mesma hora, vocк me traz um dйcimo de suas ovelhas. Eu
    lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.
    E sumiu numa das esquinas da praзa.


    O rapaz tentou ler o livro, mas nгo conseguiu concentrar-se mais.
    Estava agitado e tenso, porque sabia que o velho falava a verdade. Foi atй o
    pipoqueiro, comprou um saco de pipocas, enquanto pensava se devia ou nгo
    contar a ele o que o velho dissera. "Аs vezes й melhor deixar as coisas como
    estгo", pensou o rapaz, e ficou quieto. Se dissesse algo, o pipoqueiro ia
    ficar trкs dias pensando em largar tudo, mas estava muito acostumado com sua
    carrocinha.


    Ele podia evitar este sofrimento ao pipoqueiro. Comeзou a andar sem
    rumo pela cidade, e foi atй o porto. Havia um pequeno prйdio, e no prйdio
    havia uma janelinha onde as pessoas compravam passagens. O Egito estava na
    Бfrica.
    ґ Quer alguma coisa? ґ perguntou o sujeito no guichк.
    ґ Talvez amanhг ґ disse o rapaz se afastando. Se vendesse apenas uma
    ovelha podia chegar atй o outro lado do estreito. Era uma idйia que o
    apavorava.
    ґ Mais um sonhador ґ disse o sujeito do guichк ao seu assistente,
    enquanto o rapaz se afastava. ґ Nгo tem dinheiro para viajar.

    Quando estava no guichк, o rapaz havia se lembrado de suas ovelhas, e
    sentiu medo de voltar para junto delas. Dois anos haviam passado aprendendo
    tudo sobre a arte do pastoreio; sabia tosquiar, cuidar das ovelhas grбvidas,
    proteger os animais contra os lobos. Conhecia todos os campos e pastos de
    Andaluzia. Conhecia o preзo justo de comprar e vender cada um dos seus
    animais.
    Resolveu voltar atй o estбbulo de seu amigo pelo caminho mais longo. A
    cidade tambйm tinha um castelo, e ele resolveu subir a rampa de pedra e
    sentar-se numa de suas muradas. Lб de cima ele podia ver a Бfrica. Alguйm
    certa vez havia lhe explicado que por ali chegaram os mouros, que ocuparam
    durante tantos anos quase toda a Espanha. O rapaz detestava os mouros. Eles
    й que tinham trazido os ciganos.
    De lб podia ver tambйm quase toda a cidade, inclusive a praзa onde
    havia conversado com o velho.
    "Maldita hora em que encontrei este velho", pensou ele. Tinha ido
    apenas buscar uma mulher que interpretasse sonhos. Nem a mulher nem o velho
    davam qualquer importвncia para o fato de que ele era um pastor. Eram
    pessoas solitбrias, que jб nгo acreditavam mais na vida, e nгo entendiam que
    os pastores terminam apegados аs suas ovelhas. Ele conhecia em detalhes cada
    uma delas: sabia qual mancava, qual iria dar cria daqui a dois meses, e
    quais eram as mais preguiзosas. Sabia tambйm como tosquiб-las, e como
    matб-las. Se resolvesse partir, elas sofreriam.
    Um vento comeзou a soprar. Ele conhecia aquele vento: as pessoas o
    chamavam de Levante, porque com este vento chegaram tambйm as hordas de
    infiйis. Atй conhecer Tarifa, nunca havia pensado que a Бfrica estava tгo
    perto. Isto era um grande perigo: os mouros poderiam invadir novamente.
    O Levante comeзou a soprar mais forte. "Estou entre as ovelhas e o
    tesouro", pensava o rapaz. Tinha que decidir-se entre alguma coisa que havia
    se acostumado e alguma coisa que gostaria de ter. Havia tambйm a filha do
    comerciante, mas ela nгo era tгo importante como as ovelhas, porque nгo
    dependia dele. Talvez sequer se lembrasse dele. Teve certeza de que, se nгo
    aparecesse daqui a dois dias, a menina nгo iria notar: para ela todos os
    dias eram iguais, e quando todos os dias ficam iguais, й porque as pessoas
    deixaram de perceber as coisas boas que aparecem em suas vidas sempre que o
    sol cruza o cйu.
    "Eu larguei meu pai, minha mгe, e o castelo da minha cidade. Eles se
    acostumaram e eu me acostumei. As ovelhas tambйm vгo se acostumar com a
    minha falta", pensou o rapaz.
    De lб de cima ele olhou a praзa. O pipoqueiro continuava vendendo suas
    pipocas. Um jovem casal sentou-se no banco onde ele havia conversado com o
    velho, e deram um longo beijo.


    "O pipoqueiro", disse para si mesmo, sem completar a frase. Porque o
    Levante havia comeзado a soprar com mais forзa, e ele ficou sentindo o vento
    no rosto. Ele trazia os mouros, й verdade, mas tambйm trazia o cheiro do
    deserto e das mulheres cobertas com vйu. Trazia o suor e os sonhos dos
    homens que um dia haviam partido em busca do desconhecido, de ouro, de
    aventuras ґ e de pirвmides. O rapaz comeзou a invejar a liberdade do vento,
    e percebeu que poderia ser como ele. Nada o impedia, exceto ele prуprio. As
    ovelhas, a filha do comerciante, os campos de Andaluzia, eram apenas os
    passos de sua Lenda Pessoal.







    No dia seguinte o rapaz encontrou-se com o velho ao meio-dia. Trazia
    seis ovelhas consigo.
    ґ Estou surpreso ґ disse ele. ґ Meu amigo comprou imediatamente as
    ovelhas. Disse que a vida inteira havia sonhado em ser pastor, e aquilo era
    um bom sinal.
    ґ Й sempre assim ґ disse o velho. ґ Chamamos de Princнpio Favorбvel. Se
    vocк for jogar baralho pela primeira vez, com quase toda certeza irб ganhar.
    Sorte de principiante.
    ґ E por que?
    ґ Porque a vida quer que vocк viva sua Lenda Pessoal.
    Depois comeзou a examinar as seis ovelhas, e descobriu que uma mancava.
    O rapaz explicou que isto nгo tinha importвncia, porque ela era a mais
    inteligente, e produzia bastante lг.
    ґ Onde estб o tesouro? ґ perguntou.
    ґ O tesouro estб no Egito, perto das Pirвmides.
    O rapaz levou um susto. A velha tinha dito a mesma coisa, mas nгo tinha
    cobrado nada.
    ґ Para chegar atй ele, vocк terб que seguir os sinais. Deus escreveu no
    mundo o caminho que cada homem deve seguir. Й sу ler o que ele escreveu para
    vocк.
    Antes que o rapaz dissesse alguma coisa, uma mariposa comeзou a
    esvoaзar entre ele e o velho. Lembrou-se de seu avф; quando ele era crianзa,
    seu avф lhe dissera que as mariposas eram sinal de boa sorte. Como os
    grilos, as esperanзas, as lagartixas, e os trevos de quatro folhas.
    ґ Isto ґ disse o velho, que era capaz de ler seus pensamentos. ґ
    Exatamente como seu avф lhe ensinou. Estes sгo os sinais.