Depois o velho abriu o manto que lhe cobria o peito. O rapaz ficou
impressionado com o que viu, e lembrou-se do brilho que havia notado no dia
anterior. O velho tinha um peitoral de ouro maciзo, coberto de pedras
preciosas.
Era realmente um rei. Devia estar disfarзado assim para fugir dos
salteadores.
ґ Tome ґ disse o velho, tirando uma pedra branca e uma pedra negra que
estavam presas no centro do peitoral de ouro. ґ Chamam-se Urim e Tumim. A
preta quer dizer "sim", a branca quer dizer "nгo". Quando vocк nгo conseguir
enxergar os sinais, elas servem. Faзa sempre uma pergunta objetiva.
"Mas de uma maneira geral, procure tomar suas decisхes. O tesouro estб
nas Pirвmides e isto vocк jб sabia; mas teve que pagar seis ovelhas porque
eu lhe ajudei a tomar uma decisгo".
O rapaz guardou as pedras no alforje . Daqui por diante, tomaria suas
prуprias decisхes.
ґ Nгo se esqueзa de que tudo й uma coisa sу. Nгo se esqueзa da
linguagem dos sinais. E, sobretudo, nгo se esqueзa de ir atй o fim de sua
Lenda Pessoal.
"Antes, porйm, gostaria de contar-lhe uma pequena histуria.
"Certo mercador enviou seu filho para aprender o Segredo da Felicidade
com o mais sбbio de todos os homens. O rapaz andou durante quarenta dias
pelo deserto,


atй chegar a um belo castelo, no alto de uma montanha. Lб vivia o Sбbio
que o rapaz buscava.
"Ao invйs de encontrar um homem santo, porйm, o nosso herуi entrou numa
sala e viu uma atividade imensa; mercadores entravam e saнam, pessoas
conversavam pelos cantos, uma pequena orquestra tocava melodias suaves, e
havia uma farta mesa com os mais deliciosos pratos daquela regiгo do mundo.
O Sбbio conversava com todos, e o rapaz teve que esperar duas horas atй
chegar sua vez de ser atendido.
"O Sбbio ouviu atentamente o motivo da visita do rapaz, mas disse-lhe
que naquele momento nгo tinha tempo de explicar-lhe o Segredo da Felicidade.
Sugeriu que o rapaz desse um passeio por seu palбcio, e voltasse daqui a
duas horas.
"ґ Entretanto, quero lhe pedir um favor ґ completou o Sбbio, entregando
ao rapaz uma colher de chб, onde pingou duas gotas de уleo. ґ Enquanto vocк
estiver caminhando, carregue esta colher sem deixar que o уleo seja
derramado.
"O rapaz comeзou a subir e descer as escadarias do palбcio, mantendo
sempre os olhos fixos na colher. Ao final de duas horas, retornou а presenзa
do Sбbio.
"ґ Entгo ґ perguntou o Sбbio ґ vocк viu as tapeзarias da Pйrsia que
estгo na minha sala de jantar? Viu o jardim que o Mestre dos Jardineiros
demorou dez anos para criar? Reparou nos belos pergaminhos de minha
biblioteca?
"O rapaz, envergonhado, confessou que nгo havia visto nada. Sua ъnica
preocupaзгo era nгo derramar as gotas de уleo que o Sбbio lhe havia
confiado.
"ґ Pois entгo volte e conheзa as maravilhas do meu mundo ґ disse o
Sбbio. ґ Vocк nгo pode confiar num homem se nгo conhece sua casa.
"Jб mais tranqьilo, o rapaz pegou a colher e voltou a passear pelo
palбcio, desta vez reparando em todas as obras de arte que pendiam do teto e
das paredes. Viu os jardins, as montanhas ao redor, a delicadeza das flores,
o requinte com que cada obra de arte estava colocada em seu lugar. De volta
а presenзa do Sбbio, relatou pormenorizadamente tudo que havia visto.
"ґ Mas onde estгo as duas gotas de уleo que lhe confiei? ґ perguntou o
Sбbio.
"Olhando para a colher, o rapaz percebeu que as havia derramado.
"ґ Pois este й o ъnico conselho que eu tenho para lhe dar ґ disse o
mais Sбbio dos Sбbios. ґ O segredo da felicidade estб em olhar todas as
maravilhas do mundo, e nunca se esquecer das duas gotas de уleo na colher".
O rapaz ficou em silкncio. Havia compreendido a histуria do velho rei.
Um pastor gosta de viajar, mas jamais esquece suas ovelhas.
O velho olhou para o rapaz, e com as duas mгos espalmadas fez alguns
gestos estranhos em sua cabeзa. Depois, pegou os animais e seguiu seu
caminho.





No alto da pequena cidade de Tarifa existe um velho forte construнdo
pelos mouros, e quem senta em suas muralhas consegue enxergar uma praзa, um
pipoqueiro, e um pedaзo da Бfrica. Melquisedec, o Rei de Salйm, sentou-se na
murada do forte aquela tarde, e sentiu o vento Levante no rosto. As ovelhas
esperneavam ao seu lado, com medo


do novo dono, e excitadas com tantas mudanзas. Tudo que elas queriam
era apenas comida e бgua.
Melquisedec olhou o pequeno navio que estava zarpando do porto. Nunca
mais tornaria a ver o rapaz, da mesma maneira como jamais tornou a ver
Abraгo, depois de lhe ter cobrado o dнzimo. Entretanto, esta era a sua obra.
Os deuses nгo devem ter desejos, porque os deuses nгo tкm Lenda
Pessoal. Entretanto, o Rei de Salйm torceu intimamente para que o rapaz
tivesse кxito.
"Pena que ele vai esquecer logo meu nome", pensou. "Devia ter repetido
mais de uma vez. Assim, quando falasse a meu respeito, diria que sou
Melquisedec, o Rei de Salйm."
Depois olhou para o cйu meio arrependido: "sei que й vaidade das
vaidades, como Tu disseste, Senhor. Mas um velho rei аs vezes tem que sentir
orgulho de si mesmo".




"Como й estranha a Бfrica", pensou o rapaz.
Estava sentado numa espйcie de bar igual a outros bares que ele havia
encontrado nas ruelas estreitas da cidade. Algumas pessoas fumavam um
cachimbo gigante, que era passado de boca em boca. Em poucas horas havia
visto homens de mгos dadas, mulheres com o rosto coberto, e sacerdotes que
subiam em longas torres e comeзavam a cantar ґ enquanto todos а sua volta se
ajoelhavam e batiam com a cabeзa no solo.
"Coisa de infiйis", disse para si mesmo. Quando crianзa, via sempre na
igreja da sua aldeia uma imagem de Sгo Santiago Matamouros em seu cavalo
branco, com a espada desembainhada, e figuras como aquelas debaixo de seus
pйs. O rapaz sentia-se mal e terrivelmente sу. Os infiйis tinham um olhar
sinistro.
Alйm disso, na pressa de viajar, ele havia se esquecido de um detalhe,
um ъnico detalhe, que podia afastб-lo do seu tesouro por muito tempo:
naquele paнs todos falavam бrabe.
O dono do bar se aproximou e o rapaz apontou para uma bebida que tinha
sido servida em outra mesa. Era um chб amargo. O rapaz preferia beber vinho.
Mas nгo devia preocupar-se com isto agora. Tinha que pensar apenas no
seu tesouro, e a maneira de consegui-lo. A venda das ovelhas lhe havia
deixado com bastante dinheiro no bolso, e o rapaz sabia que o dinheiro era
mбgico: com ele ninguйm jamais estб sozinho. Daqui a pouco, talvez em alguns
dias, estaria junto das Pirвmides. Um velho, com todo aquele ouro no peito,
nгo precisava mentir para ganhar seis ovelhas.
O velho lhe havia falado de sinais. Enquanto atravessava o mar, ele
havia pensado nos sinais. Sim, sabia do que ele estava falando: durante o
tempo em que estivera nos campos de Andaluzia, havia se acostumado a ler na
terra e nos cйus as condiзхes do caminho que devia seguir. Aprendera que
certo pбssaro indicava uma cobra por perto, e que determinado arbusto era
sinal de бgua daqui a alguns quilфmetros. As ovelhas lhe haviam ensinado
isto.
"Se Deus conduz tгo bem as ovelhas, tambйm conduzirб o homem",
refletiu, e ficou mais tranqьilo. O chб parecia menos amargo.
ґ Quem й vocк? ґ ouviu uma voz em espanhol.
O rapaz ficou imensamente aliviado. Estava pensando em sinais e alguйm
tinha aparecido.
ґ Como vocк fala espanhol? ґ perguntou. O recйm-chegado era um rapaz
vestido а maneira dos ocidentais, mas a cor de sua pele indicava que devia
ser daquela cidade. Tinha mais ou menos sua altura e sua idade.
ґ Quase todo mundo aqui fala espanhol. Estamos hб apenas duas horas da
Espanha.
ґ Sente-se e peзa alguma coisa por minha conta ґ disse o rapaz. ґ E
peзa um vinho para mim. Detesto este chб.
ґ Nгo hб vinho no paнs ґ disse o recйm-chegado. ґ A religiгo nгo
permite.
O rapaz disse entгo que precisava chegar atй as Pirвmides. Quase ia
falando do tesouro, mas resolveu ficar calado. Senгo era bem capaz do бrabe
querer uma parte para levб-lo atй lб. Lembrou-se do que o velho lhe dissera
a respeito de ofertas.
ґ Gostaria que me levasse atй lб, se puder. Posso lhe pagar como guia.
ґ Vocк tem idйia de como chegar atй lб?


O rapaz reparou que o dono do bar estava por perto, ouvindo atentamente
a conversa. Sentia-se incomodado com a presenзa dele. Mas tinha encontrado
um guia, e nгo ia perder esta oportunidade.
ґ Vocк tem que atravessar todo o deserto de Saara ґ disse o
recйm-chegado. ґ E para isto precisamos de dinheiro. Quero saber se vocк tem
dinheiro suficiente.
O rapaz achou estranha a pergunta. Mas confiava no velho, e o velho lhe
falara que quando se quer uma coisa, o universo sempre conspira a favor.
Tirou seu dinheiro do bolso e mostrou ao recйm-chegado. O dono do bar
aproximou-se e olhou tambйm. Os dois trocaram algumas palavras em бrabe. O
dono do bar parecia irritado.
ґ Vamos embora ґ disse o recйm-chegado.
ґ Ele nгo quer que continuemos aqui.
O rapaz ficou aliviado. Levantou-se para pagar a conta, mas o dono o
agarrou e comeзou a falar sem parar. O rapaz era forte, mas estava numa
terra estrangeira. Foi seu novo amigo que empurrou o dono para o lado e
puxou o rapaz para fora.
ґ Ele queria seu dinheiro ґ disse. ґ Tвnger nгo й igual ao resto da
Бfrica. Estamos num porto e os portos tкm sempre muito ladrхes.
Ele podia confiar em seu novo amigo. Tinha lhe ajudado numa situaзгo
crнtica. Tirou o dinheiro do bolso e contou.
ґ Podemos chegar amanhг nas Pirвmides ґ disse o outro, pegando o
dinheiro. ґ Mas preciso comprar dois camelos.
Saнram andando pelas ruas estreitas de Tвnger. Em todo canto haviam
barracas de coisas para vender. Chegaram enfim no meio de uma grande praзa,
onde funcionava o mercado. Haviam milhares de pessoas discutindo, vendendo,
comprando, hortaliзas misturadas com adagas, tapetes junto com todo tipo de
cachimbos. Mas o rapaz nгo tirava o olho de seu novo amigo. Afinal de
contas, ele estava com todo o seu dinheiro nas mгos. Pensou em pedi-lo de
volta, mas achou que seria indelicado. Ele nгo conhecia o costume das terras
estranhas que estava pisando.
"Basta vigiб-lo", disse para si mesmo. Era mais forte que o outro.
De repente, no meio de toda aquela confusгo, estava a mais bela espada
que seus olhos jб haviam visto. A bainha era prateada, e o cabo negro,
cravejado de pedras. O rapaz prometeu a si mesmo que, quando voltasse do
Egito, ia comprar aquela espada.
ґ Pergunte ao dono da barraca quanto custa ґ disse ele ao amigo. Mas
percebeu que tinha ficado dois segundos distraнdo, olhando a espada.
Seu coraзгo ficou pequeno, como se o peito tivesse subitamente
encolhido. Teve medo de olhar para o lado, porque sabia o que ia encontrar.
Os olhos continuaram fixos na bela espada por mais alguns momentos, atй que
o rapaz tomou coragem e se virou.
Em volta dele o mercado, as pessoas indo e vindo, gritando e comprando,
os tapetes misturados com avelгs, as alfaces junto аs bandejas de cobre, os
homens de mгos dadas pelas ruas, as mulheres de vйu, o cheiro de comida
estranha, e em nenhum lugar, mas em nenhum lugar mesmo, o rosto de seu
companheiro.

O rapaz ainda quis pensar que haviam se perdido por acaso. Resolveu
ficar ali mesmo, esperando que o outro voltasse. Pouco tempo depois um
sujeito subiu numa daquelas torres e comeзou a cantar; todas as pessoas
ajoelharam-se no chгo, bateram com a cabeзa no solo, e cantaram tambйm.
Depois, como um bando de formigas trabalhadoras, desfizeram as barracas e
foram embora.


O sol comeзou a ir embora tambйm. O rapaz olhou o sol durante muito
tempo, atй que ele se escondeu atrбs das casas brancas que davam a volta na
praзa. Lembrou-se que quando aquele sol nascera de manhг, ele estava em
outro continente, era um pastor, tinha sessenta ovelhas, e um encontro
marcado com uma moзa. De manhг ele sabia tudo que iria acontecer enquanto
andava pelos campos.
Entretanto, agora que o sol se escondia, ele estava num paнs diferente,
um estranho numa terra estranha, onde nem sequer podia entender a lнngua que
falavam. Jб nгo era um pastor, e nгo tinha mais nada na vida, nem mesmo
dinheiro para voltar e comeзar tudo de novo.
"Tudo isto entre o nascente e o poente do mesmo sol" ґ pensou o rapaz.
E sentiu pena de si mesmo, porque аs vezes as coisas mudam na vida no espaзo
de um simples grito, antes que as pessoas possam se acostumar com elas.
Tinha vergonha de chorar. Jamais havia chorado na frente de suas
prуprias ovelhas. Entretanto, o mercado estava vazio e ele estava longe da
pбtria.
O rapaz chorou. Chorou porque Deus era injusto, e retribuнa desta
maneira аs pessoas que acreditavam em seus prуprios sonhos. "Quando eu
estava com as ovelhas eu era feliz, e espalhava sempre felicidade а minha
volta. As pessoas me viam chegar e me recebiam bem.
"Mas agora estou triste e infeliz. O que farei? Vou ser mais amargo e
nгo vou confiar nas pessoas, porque uma pessoa me traiu. Vou odiar aqueles
que encontraram tesouros escondidos, porque eu nгo encontrei o meu. E vou
sempre procurar manter o pouco que tenho, porque sou pequeno demais para
abraзar o mundo".

Abriu seu alforje para ver o que tinha lб dentro; talvez tivesse
sobrado alguma coisa do sanduнche que havia comido no barco. Mas sу
encontrou o livro grosso, o casaco, e as duas pedras que o velho lhe dera.
Ao olhar as pedras, sentiu uma imensa sensaзгo de alнvio. Tinha trocado
seis ovelhas por duas pedras preciosas, saнdas de um peitoral de ouro. Podia
vender as pedras e comprar a passagem de volta. "Agora serei mais esperto",
pensou o rapaz, tirando as pedras do alforje para escondк-las dentro do
bolso. Ali era um porto, e esta era a ъnica verdade que aquele homem lhe
dissera; um porto estб sempre cheio de ladrхes.
Agora entendia tambйm o desespero do dono do bar: estava tentando
dizer- lhe para nгo confiar naquele homem. "Sou como todas as pessoas: vejo
o mundo da maneira que desejava que as coisas acontecessem, e nгo da maneira
que as coisas acontecem".
Ficou olhando as pedras. Tocou com cuidado cada uma, sentindo a
temperatura e a superfнcie lisa. Elas eram seu tesouro. O simples toque das
pedras lhe deu mais tranqьilidade. Elas lhe lembravam do velho.
"Quando vocк quer uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
consegui-la", dissera-lhe o velho.
Queria entender como aquilo podia ser verdade. Estava ali num mercado
vazio, sem um centavo no bolso, e sem ovelhas para guardar aquela noite. Mas
as pedras eram a prova de que tinha encontrado um rei ґ um rei que sabia a
sua histуria, sabia da arma do seu pai e da sua primeira experiкncia sexual.
"As pedras servem para adivinhaзгo. Chamam-se Urim e Tumim". O rapaz
colocou de novo as pedras dentro do saco e resolveu experimentar. O velho
havia falado que fizesse perguntas claras, porque as pedras sу serviam para
quem sabe o que quer.


O rapaz entгo perguntou se a bкnзгo do velho continuava ainda com ele.
Tirou uma das pedras. Era "sim".
"Vou encontrar meu tesouro?" perguntou o rapaz.
Enfiou a mгo no alforje e ia pegando uma das pedras, quando ambas
escorregaram por buraco no tecido. O rapaz nunca havia percebido que seu
alforje estava rasgado. Abaixou-se para pegar o Urim e o Tumim, e colocб-los
de novo dentro do saco. Ao vк-las no chгo, porйm, uma outra frase surgiu em
sua cabeзa.
"Aprenda a respeitar e seguir os sinais", havia falado o velho rei.
Um sinal. O rapaz riu para si mesmo. Depois apanhou as duas pedras no
chгo e as recolocou no alforje. Nгo pensava costurar o buraco ґ as pedras
poderiam escapar por ali sempre que desejassem. Ele havia entendido que
certas coisas a gente nгo devia perguntar ґ para nгo fugir do prуprio
destino. "Prometi tomar minhas prуprias decisхes", disse para si mesmo.
Mas as pedras tinham dito que o velho, continuava com ele, e isto lhe
deu mais confianзa. Olhou de novo para o mercado vazio, e nгo sentiu o
desespero de antes. Nгo era um mundo estranho; era um mundo novo.
Pois, afinal de contas, tudo que ele queria era exatamente isto:
conhecer mundos novos. Mesmo que ele jamais chegasse atй as Pirвmides, ele
jб tinha ido muito mais longe do que qualquer pastor que conhecia. "Ah, se
eles soubessem que a apenas duas horas de barco existem tantas coisas
diferentes".
O mundo novo aparecia na sua frente sob a forma de um mercado vazio,
mas ele jб vira aquele mercado cheio de vida, e nunca mais ia se esquecer.
Lembrou-se da espada ґ foi um preзo caro contemplб-la um pouco, mas tambйm
nunca tinha visto nada igual antes. Sentiu de repente que ele podia olhar o
mundo como uma pobre vнtima de um ladrгo, ou como um aventureiro em busca de
um tesouro.
"Sou um aventureiro em busca de um tesouro", pensou, antes de cair
exausto no sono.


Acordou com um sujeito lhe cutucando. Tinha dormido no meio do mercado,
e a vida daquela praзa estava prestes a recomeзar de novo.
Olhou em volta, procurando suas ovelhas, e percebeu que estava em outro
mundo. Ao invйs de sentir-se triste, ficou feliz. Nгo tinha mais que seguir
em busca de бgua e comida; podia seguir em busca de um tesouro. Nгo tinha um
centavo no bolso, mas tinha fй na vida. Havia escolhido, na noite anterior,
ser um aventureiro igual aos personagens dos livros que costumava ler.
Comeзou a andar sem pressa pela praзa. Os mercadores colocaram em pй
suas barracas; ajudou um doceiro a montar a sua. Havia um sorriso diferente
no rosto daquele doceiro: estava alegre, desperto para a vida, pronto para
comeзar um bom dia de trabalho. Era um sorriso que lembrava alguma coisa do
velho, aquele velho e misterioso rei que havia conhecido. "Este doceiro nгo
estб fazendo doces porque quer viajar, ou porque quer casar com a filha de
um comerciante. "Este doceiro faz doce porque gosta disto", pensou o rapaz,
e notou que podia fazer a mesma coisa que o velho ґ saber se uma pessoa estб
prуxima ou distante de sua Lenda Pessoal. Sу em olhar para ela. "Й fбcil, e
eu nunca havia percebido isto."
Quando acabaram de montar a barraca, o doceiro lhe estendeu o primeiro
doce que havia feito. O rapaz comeu satisfeito, agradeceu, e seguiu seu
caminho. Quando jб


havia se afastado um pouco, lembrou-se que a barraca havia sido montada
com uma pessoa falando бrabe e a outra, espanhol.
E tinham se entendido perfeitamente.
"Existe uma linguagem que estб alйm das palavras", pensou o rapaz. "Eu
jб experimentei isto com as ovelhas, e agora estou experimentando com os
homens."
Estava aprendendo vбrias coisas novas. Coisas que ele jб havia
experimentado, e que no entanto eram novas, porque tinham passado por ele
que tivesse percebido. E nгo tinha percebido, porque estava acostumado com
elas. "Se eu aprender a decifrar esta linguagem sem palavras, eu vou
conseguir decifrar o mundo".
"Tudo й uma coisa sу", falava o velho.
Resolveu andar sem pressa e sem ansiedade pelas pequenas ruas de
Tвnger: sу desta maneira ia conseguir perceber os sinais. Isto exigia muita
paciкncia, mas esta й a primeira virtude que um pastor aprende. Mais uma vez
percebeu que estava aplicando naquele mundo estranho as mesmas liзхes que
suas ovelhas lhe ensinaram.
"Tudo й uma coisa sу", havia falado o velho.




O Mercador de Cristais viu o dia nascer, e sentiu a mesma angъstia que
experimentava todas as manhгs. Estava hб quase trinta anos naquele mesmo
lugar, uma loja no alto de uma ladeira, onde raramente passava um comprador.
Agora era tarde para mudar qualquer coisa: tudo que havia aprendido na vida
era vender e comprar cristais. Houve um tempo em que muita gente conhecia
sua loja: mercadores бrabes, geуlogos franceses e ingleses, soldados alemгes
sempre com dinheiro no bolso. Naquela йpoca era uma grande aventura vender
cristais, e ele pensava como ia ficar rico, e como ia ter belas mulheres em
sua velhice.
Depois o tempo foi passando, e a cidade tambйm. Ceuta cresceu mais que
Tвnger, e o comйrcio mudou de rumo. Os vizinhos mudaram-se, e ficaram apenas
algumas lojas na ladeira. Ninguйm ia subir uma ladeira por causa de umas
poucas lojas.
Mas o Mercador de Cristais nгo tinha escolha. Tinha vivido trinta anos
de sua vida comprando e vendendo peзas de cristal, e agora era tarde demais
para mudar de rumo.
Durante a manhг inteira ficou olhando o pequeno movimento da rua. Fazia
aquilo hб anos, e jб sabia o horбrio de cada pessoa. Quando faltavam alguns
minutos para o almoзo, um rapaz estrangeiro parou diante de sua vitrine.
Estava vestido normalmente, mas os olhos experimentados do Mercador de
Cristais concluнram que ele nгo tinha dinheiro. Mesmo assim resolveu entrar
e esperar alguns instantes, atй que o rapaz fosse embora.






Havia um cartaz na porta dizendo que ali se falavam vбrias lнnguas. O
rapaz viu um homem aparecer atrбs do balcгo.
ґ Posso limpar estes vasos se vocк quiser ґ disse o rapaz. ґ Assim como
eles estгo, nenhum comprador vai querer comprar.
O homem olhou sem dizer nada
ґ Em troca, vocк me paga um prato de comida.
O homem continuou em silкncio, e o rapaz sentiu que precisava tomar uma
decisгo. Dentro de seu alforje havia o casaco ґ nгo ia precisar mais dele no
deserto. Tirou o casaco e comeзou a limpar os vasos. Durante meia hora
limpou todos os vasos da vitrine; neste meio tempo entraram dois fregueses e
compraram cristais do homem.
Quando acabou de limpar tudo, ele pediu ao homem um prato de comida.
ґ Vamos comer ґ disse o Mercador de Cristais.
Colocou uma tabuleta na porta, e foram atй um minъsculo bar no alto na
ladeira. Assim que sentaram na ъnica mesa existente, o Mercador de Cristais
sorriu.
ґ Nгo era preciso limpar nada ґ disse. ґ A lei do Alcorгo obriga a dar
de comer a quem tem fome.
ґ Entгo por que me deixou fazer isto? ґ perguntou o rapaz.
ґ Porque os cristais estavam sujos. E tanto vocк como eu precisбvamos
limpar as cabeзas dos maus pensamentos.
Quando acabaram de comer, o Mercador virou-se para o rapaz:
ґ Queria que vocк trabalhasse na minha loja . Hoje entraram dois
fregueses enquanto vocк limpava os vasos, e isto й um bom sinal.
"As pessoas falam muito em sinais", pensou o pastor. "Mas nгo percebem
o que estгo dizendo. Da mesma maneira que eu nгo percebia que hб muitos anos
falava com minhas ovelhas uma linguagem sem palavras".
ґ Quer trabalhar para mim? ґ insistiu o Mercador.
ґ Posso trabalhar o resto do dia ґ respondeu o rapaz. ґ Limparei atй de
madrugada todos os cristais da loja. Em troca, preciso de dinheiro para
estar amanhг no Egito.
O velho riu de novo.
ґ Mesmo que vocк limpasse meus cristais durante um ano inteiro, mesmo
que vocк ganhasse uma boa comissгo de vendas em cada um deles, ainda ia ter
que arranjar dinheiro emprestado para ir ao Egito. Existem milhares de
quilфmetros de deserto entre Tвnger e as Pirвmides.

Houve um momento de silкncio tгo grande, que a cidade parecia ter
adormecido. Jб nгo haviam mais os bazares, as discussхes dos mercadores, os
homens que subiam em minaretes e cantavam, as belas espadas com seus punhos
cravejados. Jб nгo havia mais a esperanзa e a aventura, velhos reis e Lendas
Pessoais, o tesouro e as pirвmides. Era como se todo o mundo estivesse
quieto, porque a alma do rapaz estava em silкncio. Nгo havia. nem dor, nem
sofrimento, nem decepзгo: apenas um olhar vazio atravйs da pequena porta do
bar, e uma vontade imensa de morrer, de que tudo acabasse para sempre
naquele minuto.



O Mercador olhou espantado para o rapaz. Era como se toda a alegria que
tinha visto aquela manhг houvesse subitamente desaparecido.
ґ Posso lhe dar dinheiro para voltar а sua terra, meu filho ґ disse o
Mercador de Cristais.
O rapaz continuou em silкncio. Depois levantou-se, ajeitou as roupas, e
pegou seu alforje.
ґ Vou trabalhar com o senhor ґ disse.
E depois de outro silкncio demorado, concluiu:
ґ Preciso de dinheiro para comprar algumas ovelhas.









Hб quase um mкs o rapaz estava trabalhando para o Mercador de Cristais,
e nгo era exatamente o tipo de emprego que lhe fazia feliz. O Mercador
passava o dia inteiro resmungando atrбs do balcгo, pedindo que tomasse
cuidado com as peзas, que nгo deixasse quebrar nada.
Mas continuava no emprego porque o Mercador era um velho rabujento, mas
nгo era injusto; o rapaz recebia uma boa comissгo em cada peзa vendida, e jб
havia conseguido juntar algum dinheiro. Naquela manhг havia feito certos
cбlculos: se continuasse a trabalhar todos os dias como estava trabalhando,
ia precisar de um ano inteiro para poder comprar algumas ovelhas.
ґ Gostaria de fazer uma estante para os cristais ґ disse o rapaz ao
Mercador. ґ Ela pode ser colocada do lado de fora, e atrair quem estб
passando lб embaixo da ladeira.
ґ Nunca fiz uma estante antes ґ respondeu o Mercador. ґ As pessoas
passam e esbarram. Os cristais se quebram.
ґ Quando eu andava pelo campo com as ovelhas, elas podiam morrer se
encontrassem uma cobra. Mas isto faz parte da vida das ovelhas e dos
pastores.
O Mercador atendeu um freguкs que desejava trкs vasos de cristal.
Estava vendendo melhor do que nunca, como se o mundo tivesse voltado no
tempo, para a йpoca em que a rua era uma das principais atraзхes de Tвnger.
ґ O movimento jб melhorou bastante ґ disse ao rapaz, quando o freguкs
saiu. ґ O dinheiro permite que eu viva melhor, e lhe devolverб as suas
ovelhas em pouco tempo. Para que exigir mais da vida?
ґ Porque temos que seguir os sinais ґ falou o rapaz, quase sem querer;
e arrependeu-se do que dissera, porque o Mercador nunca havia encontrado um
rei.
"Chama-se Princнpio Favorбvel, sorte de principiante. Porque a vida
quer que vocк viva sua Lenda Pessoal", falara o velho.
O Mercador, entretanto, estava entendendo o que o rapaz falava. A
simples presenзa dele na loja era um sinal, e com o passar dos dias, com o
dinheiro entrando na caixa, ele nгo estava arrependido de haver contratado o
espanhol. Mesmo que o rapaz estivesse ganhando mais do que devia; como ele
sempre havia achado que as vendas nгo mudavam mais, tinha oferecido uma
comissгo alta, e sua intuiзгo dizia que em breve o garoto estaria de volta
аs suas ovelhas.
ґ Por que vocк queria conhecer as Pirвmides? ґ perguntou, para mudar o
assunto da estante.
ґ Porque sempre me falaram nelas ґ disse o rapaz, evitando falar no seu
sonho. Agora o tesouro era uma lembranзa sempre dolorosa, e o rapaz evitava
pensar nisto.
ґ Eu nгo conheзo ninguйm aqui que queira atravessar o deserto sу para
conhecer as Pirвmides ґ disse o Mercador. ґ Sгo apenas um monte de pedras.
Vocк pode construir uma no seu quintal.
ґ Vocк nunca teve sonhos de viajar ґ disse o rapaz, atendendo mais um
freguкs que entrava na loja.





Dois dias depois o velho procurou o rapaz para falar da estante.
ґ Nгo gosto de mudanзas ґ disse o Mercador. ґ Nem eu nem vocк somos
como Hassan, o rico comerciante. Se ele erra numa compra, isto nгo o afeta
muito. Mas nуs dois temos sempre que conviver com nossos erros.
"Й verdade", pensou o rapaz.
ґ Para que vocк quer a estante? ґ disse o Mercador.
ґ Quero voltar mais rбpido para minhas ovelhas. Temos que aproveitar
quando a sorte estб do nosso lado, e fazer tudo para ajudб-la da mesma
maneira que ela estб nos ajudando. Chama-se Princнpio Favorбvel. Ou "sorte
de principiante".
O velho ficou calado por algum tempo. Depois disse:
ґ O Profeta nos deu o Alcorгo, e nos deixou apenas cinco obrigaзхes
para serem seguidas em nossa existкncia. A mais importante й a seguinte: sу
existe um Deus. As outras sгo: rezar cinco vezes por dia, fazer jejum no mкs
de Ramadг, fazer caridade com os pobres.
Parou de falar. Seus olhos ficaram cheios de бgua ao falar do Profeta.
Era um homem fervoroso, e mesmo com toda a sua impaciкncia, procurava viver
sua vida de acordo com a lei muзulmana.
ґ E qual a quinta obrigaзгo? ґ perguntou o rapaz.
ґ Hб dois dias atrбs vocк disse que eu nunca tive sonhos de viajar ґ
respondeu o Mercador. ґ A quinta obrigaзгo de todo muзulmano й uma viagem.
Devemos ir, pelo menos uma vez na vida, а cidade sagrada de Meca.
"Meca й muito mais longe que as Pirвmides. Quando eu era jovem, preferi
juntar o pouco dinheiro que tinha para comeзar esta loja. Pensava em ser
rico algum dia, para ir a Meca. Passei a ganhar dinheiro, mas nгo podia
deixar ninguйm cuidando dos cristais, porque os cristais sгo coisas
delicadas. Ao mesmo tempo, via passar defronte a minha loja muitas pessoas
que seguiam na direзгo de Meca. Haviam alguns peregrinos ricos, que iam com
um sйquito de criados e de camelos, mas a maior parte das pessoas era muito
mais pobre do que eu era".
"Todas iam e voltavam contentes, e colocavam na porta de suas casas os
sнmbolos da peregrinaзгo. Uma delas, um sapateiro que vivia de remendar as
botas alheias, me disse que havia caminhado quase um ano pelo deserto, mas
que ficava sempre mais cansado quando tinha que caminhar alguns quarteirхes
em Tвnger para comprar couro".
ґ Por que nгo vai a Meca agora? ґ perguntou o rapaz.
ґ Porque Meca й o que me mantйm vivo. Й o que me faz agьentar todos
estes dias iguais, estes vasos calados nas prateleiras, o almoзo e o jantar
naquele restaurante horrнvel. Tenho medo de realizar meu sonho, e depois nгo
ter mais motivos para continuar vivo.
"Vocк sonha com ovelhas e com pirвmides. Й diferente de mim, porque
deseja realizar seus sonhos. Eu quero apenas sonhar com Meca. Jб imaginei
milhares de vezes a travessia do deserto, minha chegada na praзa onde estб a
Pedra Sagrada, as sete voltas que devo dar em torno dela antes de tocб-la.
Jб imaginei quais pessoas estarгo do meu lado, na minha frente, e as
conversas e oraзхes que compartilharemos juntos. Mas tenho medo que seja uma
grande decepзгo, entгo prefiro apenas sonhar".
Neste dia, o Mercador deu permissгo ao rapaz para construir a estante.
Nem todos podem ver os sonhos da mesma maneira.








Mais dois meses se passaram, e a estante trouxe muitos fregueses а loja
dos cristais. O rapaz calculou que, se trabalhasse mais seis meses, poderia
voltar а Espanha e comprar sessenta ovelhas, e mais sessenta ovelhas. Em
menos de um ano ele teria duplicado seu rebanho, e ia poder negociar com os
бrabes, porque jб conseguia falar aquela lнngua estranha. Depois daquela
manhг no mercado, ele nгo havia mais utilizado o Urim e o Tumim, porque o
Egito passou a ser apenas um sonho tгo distante para ele como era a cidade
de Meca para o Mercador. Entretanto, o rapaz agora estava contente com seu
trabalho, e pensava a todo momento no dia em que iria desembarcar em Tarifa
como um vencedor.
"Lembre-se de saber sempre o que quer", havia falado o velho rei. O
rapaz sabia, e estava trabalhando para isto. Talvez seu tesouro tivesse sido
chegar аquela terra estranha, encontrar um assaltante, e dobrar o nъmero de
seu rebanho sem ter gasto um centavo sequer.
Estava orgulhoso de si mesmo. Havia aprendido coisas importantes, como
o comйrcio de cristais, linguagem sem palavras, e os sinais. Uma tarde viu
um homem no alto da ladeira, reclamando que era impossнvel encontrar um
lugar decente para beber alguma coisa depois de toda a subida. O rapaz jб
conhecia a linguagem dos sinais, e chamou o velho para conversar.
ґ Vamos vender chб para as pessoas que sobem a ladeira ґ disse ele.
ґ Muitas pessoas vendem chб por aqui ґ respondeu o Mercador.
ґ Podemos vender chб em vasos de cristal. Assim as pessoas vгo gostar
do chб, e vгo querer comprar os cristais. Porque o que mais seduz os homens
й a beleza.
O Mercador olhou para o rapaz durante algum tempo. Nгo respondeu nada.
Mas naquela tarde, depois de fazer suas oraзхes e fechar a loja, sentou-se
na calзada com ele e convidou-o a fumar narguilй ґ aquele estranho cachimbo
que os бrabes usavam.
ґ O que vocк estб procurando? ґ perguntou o velho Mercador de Cristais.
ґ Jб lhe disse. Preciso comprar de volta as ovelhas. E para isto й
necessбrio dinheiro.
O velho colocou algumas brasas novas no narguilй, e deu uma longa
tragada.
ґ Hб trinta anos tenho esta loja. Conheзo o bom e o mau cristal, e
conheзo todos os detalhes do seu funcionamento. Estou acostumado com seu
tamanho e seu movimento. Se vocк colocar chб em cristais, a loja irб
crescer. Entгo eu vou ter que mudar minha maneira de vida.
ґ E isto nгo й bom?
ґ Estou acostumado com minha vida. Antes de vocк, eu pensava que havia
perdido tanto tempo no mesmo lugar, enquanto meus amigos todos mudavam,
quebravam, ou progrediam Isto me deixava com uma imensa tristeza. Agora eu
sei que nгo era bem assim: a loja tem o exato tamanho que eu sempre quis que
ela tivesse. Nгo quero mudar, porque nгo sei como mudar. Jб estou muito
acostumado comigo mesmo.
O rapaz nгo sabia o que dizer. O velho entгo continuou:
ґ Vocк foi uma bкnзгo para mim. E hoje estou entendendo uma coisa: toda
bкnзгo que nгo й aceita, transforma-se numa maldiзгo. Eu nгo quero mais da
vida. E vocк estб me forзando a ver riquezas e horizontes que eu nunca
conheci. Agora que os conheзo, e que conheзo minhas possibilidades imensas,
vou me sentir pior do que me sentia antes. Porque sei que posso ter tudo, e
nгo quero.


"Ainda bem que eu nгo disse nada ao pipoqueiro", pensou o rapaz.
Continuaram fumando o narguilй por algum tempo, enquanto o sol se
escondia. Estavam conversando em бrabe, e o rapaz estava satisfeito consigo
mesmo, porque falava бrabe. Houve uma йpoca em que ele achou que as ovelhas
podiam ensinar tudo sobre o mundo. Mas as ovelhas nгo sabiam ensinar бrabe.
"Devem ter outras coisas no mundo que as ovelhas nгo sabem ensinar",
pensou o rapaz, enquanto olhava o Mercador em silкncio. "Porque elas sу
estгo em busca de бgua e comida.
"Acho que nгo sгo elas que ensinam: eu й que aprendo".
ґ Maktub ґ disse finalmente o mercador.
ґ O que й isto?
ґ Vocк precisaria ter nascido бrabe para compreender ґ respondeu ele. ґ
Mas a traduзгo seria algo como "estб escrito".
E enquanto apagava as brasas do narguilй, disse que o rapaz podia
comeзar a vender chб nos vasos. Аs vezes, й impossнvel deter o rio da vida.


Os homens subiam a ladeira e ficavam cansados. Entгo, lб no seu topo,
havia uma loja de belos cristais com chб de menta refrescante. Os homens
entravam para beber o chб, que era servido em lindos vasos de cristal.
"Jamais minha mulher pensou nisto", lembrava um, e comprava alguns
cristais, porque ia ter visitas naquela noite: seus convidados ficariam
impressionados com a riqueza das taзas. Outro homem passou a garantir que o
chб era sempre mais gostoso quando servido em recipientes de cristal, pois
conservavam melhor o aroma. Um terceiro disse ainda que era tradiзгo no
Oriente utilizar vasos de cristal junto com chб, por causa de seus poderes
mбgicos.
Em pouco tempo, a novidade se espalhou, e muitas pessoas passaram a
subir atй o topo da ladeira para conhecer a loja que estava fazendo algo de
novo num comйrcio tгo antigo. Outras lojas de chб em copos de cristal foram
abertas, mas nгo ficavam em cima de uma ladeira, e por isso estavam sempre
vazias.
Em pouco tempo, o Mercador teve que contratar mais dois empregados.
Passou a importar, junto com os cristais, quantidades enormes de chб, que
eram diariamente consumidas pelos homens e mulheres com sede de coisas
novas.
E assim transcorreram seis meses.






O rapaz acordou antes do sol nascer. Tinham-se passado onze meses e
nove dias desde que ele havia pisado pela primeira vez no continente
africano.
Vestiu sua roupa бrabe, de linho branco, comprada especialmente para
aquele dia. Colocou o lenзo na cabeзa, fixo por um anel feito de pele de
camelo. Calзou as sandбlias novas, e desceu sem fazer qualquer ruнdo.
A cidade ainda dormia. Ele fez um sanduнche de gergelim, e bebeu chб
quente no vaso de cristal. Depois sentou-se na soleira da porta, fumando
sozinho o narguilй.
Fumou em silкncio, sem pensar em nada, escutando apenas o ruнdo sempre
constante do vento que soprava trazendo o cheiro do deserto. Depois que
acabou de f'umar, enfiou a mгo num dos bolsos do traje, e ficou alguns
instantes contemplando o que havia retirado lб de dentro.
Havia um grande maзo de dinheiro. O suficiente para comprar cento e
vinte ovelhas, uma passagem de volta, e uma licenзa de comйrcio entre seu
paнs e o paнs onde estava.
Esperou pacientemente que o velho acordasse e abrisse a loja. Os dois
entгo foram juntos tomar mais chб.
ґ Vou embora hoje ґ disse o rapaz. ґ Tenho dinheiro para comprar minhas
ovelhas. Vocк tem dinheiro para ir а Meca.
O velho nгo disse nada.
ґ Peзo sua bкnзгo ґ insistiu o rapaz. ґ Vocк me ajudou.
O velho continuou a preparar o chб em silкncio. Depois de um certo
tempo, porйm, virou-se para o rapaz.
ґ Tenho orgulho de vocк ґ disse. ґ Vocк trouxe alma para a minha loja
de cristais. Mas sabe que eu nгo vou а Meca. Como sabe que nгo voltarб a
comprar ovelhas.
ґ Quem lhe disse isto? ґ perguntou o rapaz, assustado.
ґ Maktub ґ disse simplesmente o velho Mercador de Cristais.
E o abenзoou.


O rapaz foi atй seu quarto e juntou tudo que tinha. Eram trкs sacolas
cheias. Quando jб estava saindo, notou que, num canto do quarto, havia seu
velho alforje de pastor. Estava todo amassado, e ele quase nem se lembrava
mais dele. Lб dentro estava ainda o mesmo livro e o casaco. Quando ele tirou
o casaco, pensando em dar de presente para um rapaz na rua, as duas pedras
rolaram pelo chгo. O Urim e o Tumim.
O rapaz entгo se lembrou do velho rei, e ficou surpreso em perceber hб
quanto tempo nгo pensava mais nisto. Durante um ano havia trabalhado sem
parar, pensando apenas em conseguir dinheiro para nгo voltar de cabeзa baixa
para a Espanha.
"Nunca desista dos seus sonhos", havia falado o velho rei. "Siga os
sinais".
O rapaz pegou o Urim e o Tumim no chгo, e teve novamente aquela
estranha sensaзгo de que o rei estava perto. Trabalhara duro durante um ano,
e os sinais indicavam que agora era o momento de partir.
"Vou voltar exatamente a ser o que era antes", pensou o rapaz. "E as
ovelhas nгo me ensinaram a falar бrabe".


As ovelhas, entretanto, tinham ensinado uma coisa muito mais
importante: que havia uma linguagem no mundo que todos compreendiam, e que o
rapaz tinha utilizado durante todo aquele tempo para fazer a loja progredir.
Era a linguagem do entusiasmo, das coisas feitas com amor e com vontade, em
busca de algo que se desejava ou em que se acreditava. Tвnger jб nгo era
mais uma cidade estranha, e ele sentiu que da mesma maneira que tinha
conquistado aquele lugar, poderia conquistar o mundo.
"Quando vocк deseja uma coisa, todo o Universo conspira para que possa
realizб-la", havia falado o velho rei.
Mas o velho rei nгo falara de assaltos, de desertos imensos, de pessoas
que conhecem os seus sonhos mas nгo desejam realizб-los. O velho rei nгo
havia falado que as Pirвmides eram apenas um monte de pedras, e qualquer um
podia fazer um monte de pedras em seu quintal. E tinha se esquecido de dizer
que, quando se tem dinheiro para comprar um rebanho maior do que o que
possuнa, deve-se comprar este rebanho.
O rapaz pegou o alforje e juntou com seus outros sacos. Desceu as
escadas; o velho estava atendendo um casal estrangeiro, enquanto dois outros
fregueses andavam pela loja, tomando chб em vasos de cristal. Era um bom
movimento para aquela hora da manhг. Do lugar onde estava, notou pela
primeira vez que o cabelo do Mercador lembrava muito o cabelo do velho rei.
Lembrou-se do sorriso do doceiro, no primeira dia em Tвnger, quando nгo
tinha para onde ir nem o que comer; tambйm aquele sorriso lembrava o velho
rei.
"Como se ele tivesse passado por aqui e deixado uma marca", pensou. "E
cada pessoa nгo tivesse jб conhecido este rei em algum momento de suas
existкncias. Afinal de contas, ele disse que sempre aparecia para quem vive
sua Lenda Pessoal".

Saiu sem se despedir do Mercador de Cristais. Nгo queria chorar porque
as pessoas podiam ver. Mas ia ter saudade de todo aquele tempo, e de todas
as coisas boas que havia aprendido. Estava mais confiante em si e tinha
vontade de conquistar o mundo.
"Mas estou indo para os campos que jб conheзo, conduzir de novo as
ovelhas". E nгo estava mais contente com sua decisгo. Tinha trabalhado um
ano inteiro para realizar um sonho, e este sonho, a cada minuto, ia perdendo
sua importвncia. Talvez porque nгo fosse seu sonho.
"Quem sabe й melhor ser como o Mercador de Cristais: nunca ir а Meca, e
viver da vontade de conhecк-la". Mas estava segurando o Urim e o Tumim nas
mгos, e estas pedras lhe traziam a forзa e a vontade do velho rei. Por uma
coincidкncia ґ ou um sinal, pensou o rapaz ґ ele chegou ao bar onde havia
entrado no primeiro dia. Nгo havia mais o ladrгo, e o dono lhe trouxe uma
xнcara de chб.
"Sempre poderei voltar a ser pastor", pensou o rapaz. "Aprendi a cuidar
das ovelhas, e nunca mais me esquecerei de como elas sгo. Mas talvez nгo
tenha outra oportunidade de chegar atй as Pirвmides do Egito. O velho tinha
um peitoral de ouro, e sabia minha histуria. Era um rei de verdade, um rei
sбbio".
Estava apenas a duas horas de barco das planнcies de Andaluzia, mas
havia um deserto inteiro entre ele as Pirвmides. O rapaz percebeu talvez
esta maneira de pensar a mesma situaзгo: na verdade, ele estava duas horas
mais perto do seu tesouro. Mesmo que, para caminhar estas duas horas,
tivesse demorado quase um ano inteiro.
"Sei porque quero voltar para minhas ovelhas. Eu jб conheзo as ovelhas;
nгo dгo muito trabalho, e podem ser amadas. Nгo sei se o deserto pode ser
amado, mas й o deserto que esconde o meu tesouro. Se eu nгo conseguir
encontrб-lo, poderei sempre voltar


para casa. Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho
todo o tempo que preciso; por que nгo?"
Sentiu uma alegria imensa naquele momento. Sempre podia voltar a ser
pastor de ovelhas. Sempre podia voltar a ser vendedor de cristais. Talvez o
mundo tivesse muitos outros tesouros escondidos, mas ele havia tido um sonho
repetido e encontrado um rei. Nгo acontecia com qualquer pessoa.
Estava contente quando saiu do bar. Havia se lembrado que um dos
fornecedores do Mercador trazia os cristais em caravanas que cruzavam o
deserto. Manteve o Urim e o Tumim nas mгos; por causa daquelas duas pedras,
estava de volta ao caminho de seu tesouro.
"Sempre estou perto dos que vivem a Lenda Pessoal", dissera o velho
rei.
Nгo custava nada ir atй o armazйm, saber se as Pirвmides eram de fato
muito longe.







O Inglкs estava sentado numa construзгo cheirando a animais, suor, e
poeira. Nгo podia chamar aquilo de armazйm; era apenas um curral. "Toda a
minha vida para ter que passar por um lugar como este", pensou enquanto
folheava distraнdo uma revista de quнmica. "Dez anos de estudo me conduzem a
um curral".
Mas era preciso seguir adiante. Tinha que acreditar em sinais. Toda a
sua vida, todos os seus estudos foram em busca da linguagem ъnica que o
Universo falava. Primeiro havia se interessado por Esperanto, depois por
religiхes, e finalmente por Alquimia. Sabia falar Esperanto, entendia
perfeitamente as diversas religiхes, mas ainda nгo era um Alquimista. Tinha
conseguido decifrar coisas importantes, й verdade. Mas suas pesquisas
chegaram a um ponto onde nгo conseguia progredir mais. Tinha tentado em vгo
entrar em contato com algum alquimista. Mas os alquimistas eram pessoas
estranhas, que sу pensavam neles mesmos, e quase sempre recusavam ajuda.
Quem sabe, nгo haviam descoberto o segredo da Grande Obra ґ chamada de Pedra