mas Fбtima era uma mulher do deserto, e se alguйm podia lhe ensinar isto,
era o deserto.
Ficou assim, sem pensar em nada, atй que pressentiu um movimento sobre
sua cabeзa. Olhando para o cйu, viu que eram dois gaviхes, voando muito
alto.
O rapaz comeзou a olhar os gaviхes, e os desenhos que eles faziam no
cйu. Parecia uma coisa desordenada, entretanto, tinham algum sentido para o
rapaz. Apenas nгo conseguia compreender seu significado. Decidiu entгo que
devia acompanhar com os olhos o movimento dos pбssaros, e talvez pudesse ler
alguma coisa. Talvez o deserto pudesse lhe explicar o amor sem posse.
Comeзou a sentir sono. Seu coraзгo pediu para que nгo dormisse: ao
invйs disto, devia se entregar. "Estava penetrando na Linguagem do Mundo, e
tudo nesta terra faz sentido, atй mesmo o vфo de gaviхes", disse. E
aproveitou para agradecer pelo fato de estar cheio de amor por uma mulher.
"Quando se ama, as coisas fazem ainda mais sentido", pensou.
De repente, um gaviгo deu um rбpido mergulho no cйu e atacou o outro.
Quando fez este movimento, o rapaz teve uma sъbita e rбpida visгo: um
exйrcito, de espadas desembainhadas, entrando no oбsis. A visгo logo sumiu,
mas aquilo lhe deixou sobressaltado. Havia ouvido falar das miragens, e jб
havia visto algumas: eram desejos que se materializavam sobre a areia do
deserto. Entretanto, ele nгo desejava um exйrcito invadindo o oбsis.
Pensou em esquecer aquilo e voltar а sua meditaзгo. Tentou novamente
concentrar-se no deserto cфr-de-rosa e nas pedras. Mas alguma coisa em seu
coraзгo nгo o deixava quieto.
"Siga sempre os sinais", dissera o velho rei. E o rapaz pensou em
Fбtima. Lembrou-se do que havia visto, e pressentiu que estava prуximo de
acontecer.
Com muita dificuldade, saiu do transe em que havia entrado.
Levantou-se, e comeзou a caminhar em direзгo аs tamareiras. Mais uma vez
percebia as muitas linguagens das coisas: desta vez, o deserto era seguro, e
o oбsis se transformara em perigo.

O cameleiro estava sentado aos pйs de uma tamareira, tambйm olhando o
pфr-do-sol. Viu quando o rapaz surgiu por detrбs de uma das dunas.
ґ Um exйrcito se aproxima ґ disse. ґ Tive uma visгo.
ґ O deserto enche de visхes o coraзгo de um homem ґ respondeu o
cameleiro.
Mas o rapaz lhe contou dos gaviхes: estava olhando seu vфo quando tinha
mergulhado de repente na Alma do Mundo.
O cameleiro ficou quieto; entendia o que o rapaz estava falando. Sabia
que qualquer coisa na face da terra pode contar a histуria de todas as
coisas. Se abrisse um livro em qualquer pбgina, ou olhasse as mгos das
pessoas, ou cartas de baralho, ou vфo dos pбssaros, ou seja lб o que fosse,
qualquer pessoa iria encontrar um laзo com a coisa que estava vivendo. Na
verdade, nгo eram as coisas que mostravam nada; eram as pessoas que, olhando
para as coisas, descobriam a maneira de penetrar na Alma do Mundo.
O deserto estava cheio de homens que ganhavam a vida porque podiam
penetrar com facilidade na Alma do Mundo. Eram conhecidos por Adivinhos, e
temidos por mulheres e velhos. Os Guerreiros raramente os consultavam,
porque era impossнvel entrar numa batalha sabendo quando se vai morrer. Os
Guerreiros preferiam o sabor da luta e a emoзгo do desconhecido; o futuro
havia sido escrito por Allah, e o que quer que Ele


tivesse escrito, era sempre para o bem do homem. Entгo os Guerreiros
viviam apenas o presente, porque o presente era cheio de surpresas, e eles
tinham que prestar atenзгo em muitas coisas: onde estava a espada do
inimigo, onde estava seu cavalo, qual o prуximo golpe que devia desferir
para salvar a vida.
O cameleiro nгo era Guerreiro, e jб havia consultado alguns adivinhos.
Muitos disseram coisas certas, outros disseram coisas erradas.
Atй que um deles, o mais velho (e o mais temido), perguntou porque o
cameleiro estava tгo interessado em saber o futuro.
ґ Para que possa fazer as coisas ґ respondeu o cameleiro. ґ E mudar o
que nгo gostaria que acontecesse.
ґ Entгo deixarб de ser seu futuro ґ respondeu o adivinho.
ґ Talvez entгo eu queira saber o futuro para me preparar para as coisas
que virгo.
ґ Se forem coisas boas, isto serб uma agradбvel surpresa ґ disse o
adivinho. ґ Se forem coisas ruins, vocк estarб sofrendo muito antes delas
acontecerem.
ґ Quero saber o futuro porque sou um homem ґ disse o cameleiro para o
adivinho. E os homens vivem em funзгo do seu futuro.
O adivinho ficou quieto por algum tempo. Ele era especialista no jogo
de varetas, que eram atiradas no chгo e interpretadas da maneira que caнam.
Naquele dia ele nгo jogou as varetas. Envolveu-as num lenзo e tornou a
colocar no bolso.
ґ Ganho a vida adivinhando o futuro das pessoas ґ disse ele. ґ Conheзo
a ciкncia das varetas, e sei como utilizб-la para penetrar neste espaзo onde
tudo estб escrito. Ali posso ler o passado, descobrir o que jб foi
esquecido, e entender os sinais do presente.
"Quando as pessoas me consultam, eu nгo estou lendo o futuro; estou
adivinhando o futuro. Porque o futuro pertence a Deus, e ele sу o revela em
circunstвncias extraordinбrias. E como consigo adivinhar o futuro? Pelos
sinais do presente. No presente й que estб o segredo; se vocк prestar
atenзгo no presente, poderб melhorб-lo. E se vocк melhorar o presente, o que
acontecerб depois tambйm serб melhor. Esqueзa o futuro e viva cada dia de
sua vida nos ensinamentos da Lei, e na confianзa de que Deus cuida dos seus
filhos. Cada dia traz em si a Eternidade".
O cameleiro quis saber quais as circunstвncias em que Deus permitia ver
o futuro:
ґ Quando Ele mesmo o mostra. E Deus mostra o futuro raramente, e por
uma ъnica razгo: й um futuro que foi escrito para ser mudado.

Deus tinha mostrado um futuro ao rapaz, pensou o cameleiro. Porque
queria que o rapaz fosse o Seu instrumento.
ґ Vб falar com os chefes tribais ґ disse o cameleiro. ґ Conte dos
guerreiros que se aproximam.
ґ Eles vгo rir de mim.
ґ Sгo homens do deserto, e os homens do deserto estгo acostumados com
os sinais.
ґ Entгo jб devem saber.
ґ Nгo estгo preocupados com isto. Acreditam que se tiverem que saber
algo que Allah deseje lhe contar, alguma pessoa lhes dirб isto. Jб aconteceu
muitas vezes antes. Mas hoje, esta pessoa й vocк.
O rapaz pensou em Fбtima. E resolveu ir ver os chefes tribais.




ґ Trago sinais do deserto ґ disse ao guarda que ficava na porta da
imensa tenda branca no centro do oбsis. ґ Quero ver os chefes.
O guarda nгo disse nada. Entrou e demorou-se muito lб dentro. Depois
saiu com um бrabe jovem, vestido de branco e ouro. O rapaz contou ao jovem o
que havia visto. Ele pediu que esperasse um pouco e tornou a entrar.
A noite caiu. Entraram e saнram vбrios бrabes e mercadores. Aos poucos
as fogueiras foram se apagando, e o oбsis comeзou a ficar tгo silencioso
como o deserto. Sу a luz da grande tenda continuava acesa. Durante todo este
tempo, o rapaz pensava em Fбtima, ainda sem entender a conversa daquela
tarde.
Finalmente, depois de muitas horas de espera, o guarda mandou que o
rapaz entrasse.
O que viu deixou-o extasiado. Nunca poderia imaginar que, no meio do
deserto, existisse uma tenda como aquela. O chгo estava coberto com os mais
belos tapetes que jб havia pisado, e do teto pendiam lustres de metal
amarelo trabalhado, coberto de velas acessas. Os chefes tribais estavam
sentados no fundo da tenda, em semicнrculo, descansando seus braзos e pernas
em almofadas de seda com ricos bordados. Criados entravam e saнam com
bandejas de prata cheias de especiarias e chб. Alguns se encarregavam de
manter acesas as brasas dos narguilйs. Um suave perfume de fumo enchia o
ambiente.
Haviam oito chefes, mas o rapaz logo percebeu quem era o mais
importante: um бrabe vestido de branco e ouro, sentado no centro do
semicнrculo. Ao seu lado estava o jovem бrabe com quem tinha conversado
antes.
ґ Quem й o estrangeiro que fala de sinais? ґ perguntou um dos chefes,
olhando para ele.
ґ Eu sou ґ respondeu. E contou o que havia visto.
ґ E por que o deserto ia contar isto a um estranho, quando sabe que
estamos hб vбrias geraзхes aqui? ґ disse outro chefe tribal.
ґ Porque meus olhos ainda nгo se acostumaram com o deserto ґ respondeu
o rapaz. ґ E eu posso ver coisas que os olhos habituados demais nгo
conseguem mais ver.
"Й porque eu sei da Alma do Mundo", pensou consigo mesmo. Mas nгo falou
nada, porque os бrabes nгo acreditam nestas coisas.
ґ O Oбsis й um terreno neutro. Ninguйm ataca um Oбsis ґ disse um
terceiro chefe.
ґ Eu conto apenas o que vi. Se nгo quiserem acreditar, nгo faзam nada.
Um completo silкncio abateu-se sobre a tenda, seguido de uma exaltada
conversa entre os chefes tribais. Falavam num dialeto бrabe que o rapaz nгo
entendia, mas quando ele fez menзгo de ir embora, um guarda disse para
ficar. O rapaz comeзou a sentir medo; os sinais diziam que havia alguma
coisa errada. Lamentou haver conversado com o cameleiro a respeito.
De repente, o velho que estava no centro deu um sorriso quase
imperceptнvel, e o rapaz tranqьilizou-se. O velho nгo havia participado da
discussгo, e nгo dissera uma palavra atй aquele momento. Mas o rapaz jб
estava acostumado com a Linguagem do Mundo, e pode sentir uma vibraзгo de
Paz cruzando a tenda de ponta a ponta. Sua intuiзгo dizia que havia agido
corretamente em vir.


A discussгo acabou. Ficaram em silкncio por algum tempo, ouvindo o
velho. Depois, ele se virou para o rapaz: desta vez seu rosto estava frio e
distante.
ґ Hб dois mil anos, numa terra distante, jogaram num poзo e venderam
como escravo um homem que acreditava em sonhos ґ disse o velho. ґ Nossos
mercadores o compraram e o trouxeram para o Egito. E todos nуs sabemos que,
quem acredita em sonhos, tambйm sabe interpretб-los.
"Embora nem sempre consiga realizб-los", pensou o rapaz, lembrando-se
da velha cigana.
ґ Por causa dos sonhos do faraу com vacas magras e gordas, este homem
livrou o Egito da fome. Seu nome era Josй. Era tambйm um estrangeiro numa
terra estrangeira, como vocк, e devia ter mais ou menos a sua idade.
O silкncio continuou. Os olhos do velho se mantinham frios.
ґ Sempre seguimos a Tradiзгo. A Tradiзгo salvou o Egito da fome naquela
йpoca, e o fez o mais rico entre os povos. A Tradiзгo ensina como os homens
devem atravessar o deserto e casar suas filhas. A Tradiзгo diz que um Oбsis
й um terreno neutro, porque ambos os lados tem Oбsis, e sгo vulnerбveis.
Ninguйm disse qualquer palavra enquanto o velho falava.
ґ Mas a Tradiзгo diz tambйm para acreditarmos nas mensagens do deserto.
Tudo que sabemos foi o deserto que nos ensinou.
O velho fez um sinal e todos os бrabes se levantaram. A reuniгo estava
para terminar. Os narguilйs foram apagados, e os guardas se colocaram em
posiзгo de sentido. O rapaz preparou-se para sair, mas o velho falou ainda
mais uma vez:
ґ Amanhг nуs vamos romper um acordo que diz que ninguйm no oбsis pode
portar armas. Durante o dia inteiro aguardaremos os inimigos. Quando o sol
descer no horizonte, os homens me devolverгo as armas. Para cada dez
inimigos mortos, vocк receberб uma moeda de ouro.
"Entretanto, as armas nгo podem sair do seu lugar sem experimentarem a
batalha. Sгo caprichosas como o deserto, e se as acostumamos com isto, da
prуxima vez podem ter preguiзa de disparar. Se nenhuma delas tiver sido
utilizada amanhг, pelo menos uma serб usada em vocк."




O oбsis estava iluminado apenas pela lua cheia quando o rapaz saiu.
Eram vinte minutos de caminhada atй sua tenda, e ele comeзou a andar.
Estava assustado com tudo que havia acontecido. Tinha mergulhado na
Alma do Mundo, e o preзo por acreditar naquilo era a sua vida. Uma aposta
alta. Mas tinha apostado alto desde o dia em que havia vendido suas ovelhas
para seguir sua Lenda Pessoal. E como dizia o cameleiro, morrer amanhг era
tгo bom como morrer em qualquer outro dia. Todo dia era feito para ser
vivido ou para abandonar o mundo. Tudo dependia apenas de uma palavra:
"Maktub".
Caminhou em silкncio. Nгo estava arrependido. Se morresse amanhг, seria
porque Deus nгo estava com vontade de mudar o futuro. Mas teria morrido
depois de haver cruzado o estreito, trabalhado em uma loja de cristais,
conhecido o silкncio do deserto e os olhos de Fбtima. Tinha vivido
intensamente cada um dos seus dias, desde que havia saнdo de casa, hб tanto
tempo atrбs. Se morresse amanhг, seus olhos teriam visto muito mais coisas
do que os olhos dos outros pastores, e o rapaz tinha orgulho disto.
De repente ouviu um estrondo, e foi jogado subitamente por terra, com o
impacto de um vento que nгo conhecia. O lugar encheu-se de poeira, que quase
cobriu a lua. Na sua frente, um enorme cavalo branco empinou soltando um
relincho aterrador.
O rapaz mal podia ver o que se passava, mas quando a poeira assentou um
pouco, sentiu um pavor que jamais havia sentido antes. Em cima do cavalo
estava um cavaleiro todo vestido de negro, com um falcгo em seu ombro
esquerdo. Usava um turbante e um lenзo que lhe cobria todo o rosto, deixando
apenas os olhos de fora. Parecia o mensageiro do deserto, mas sua presenзa
era mais forte do que todas as pessoas que havia conhecido na vida.
O estranho cavaleiro puxou a enorme espada curva que trazia presa а
sela. O aзo brilhou com a luz da lua.
ґ Quem ousou ler o vфo dos gaviхes? ґ perguntou com uma voz tгo forte
que pareceu ecoar entre as cinqьenta mil tamareiras do Al-fayoum.
ґ Eu ousei ґ disse o rapaz. Lembrou-se imediatamente da imagem de
Santiago Matamouros do seu cavalo branco com os infiйis sob as patas. Era
exatamente assim. Sу que agora a situaзгo estava invertida.
ґ Eu ousei ґ repetiu o rapaz, e abaixou a cabeзa para receber o golpe
da espada. ґ Muitas vidas serгo salvas, porque vocкs nгo contavam com a Alma
do Mundo.
A espada, porйm, nгo desceu rбpido. A mгo do estranho foi abaixando
lentamente, atй que a ponta da lвmina tocou na testa do rapaz. Era tгo
afiada que saiu uma gota de sangue.
O cavaleiro estava completamente imуvel. O rapaz tambйm. Nгo pensou um
minuto sequer em fugir. Dentro do seu coraзгo, uma estranha alegria tomou
conta dele: ia morrer por sua Lenda Pessoal. E por Fбtima. Os sinais eram
verdadeiros, enfim. Ali estava o Inimigo, e por causa disto ele nгo
precisava se preocupar com a morte, porque havia uma Alma do Mundo. Daqui a
pouco ele estaria fazendo parte dela. E amanhг o Inimigo faria parte dela
tambйm.
O estranho, porйm, apenas mantinha a espada em sua testa.
ґ Por que vocк leu o vфo dos pбssaros?
ґ Li apenas o que os pбssaros queriam contar. Eles querem salvar o
oбsis, e vocкs morrerгo. O oбsis tem mais homens que vocкs.
A espada continuava em sua testa.


ґ Quem й vocк para mudar o destino de Allah?
ґ Allah fez os exйrcitos, e fez tambйm os pбssaros. Allah me mostrou a
linguagem dos pбssaros. Tudo foi escrito pela mesma Mгo, ґ disse o rapaz,
lembrando as palavras do cameleiro.
O estranho finalmente retirou a espada da testa. O rapaz sentiu um
certo alнvio. Mas nгo podia fugir.
ґ Cuidado com as adivinhaзхes ґ disse o estranho. ґ Quando as coisas
estгo escritas, nгo hб como evitб-las.
ґ Apenas vi um exйrcito ґ disse o rapaz. ґ Nгo vi o resultado de uma
batalha.
O cavaleiro parecia contente com a resposta. Mas mantinha a espada na
sua mгo.
ґ O que faz um estrangeiro numa terra estrangeira?
ґ Busco minha Lenda Pessoal. Algo que vocк nгo entenderб nunca.
O cavaleiro colocou a espada na bainha, e o falcгo no seu ombro deu um
grito estranho. O rapaz comeзou a relaxar.
ґ Precisava testar sua coragem ґ disse o estranho. ґ A coragem й o dom
mais importante para quem busca a Linguagem do Mundo.
O rapaz ficou surpreso. Aquele homem estava falando em coisas que pouca
gente conhecia.
ґ Й preciso nгo relaxar nunca, mesmo tendo chegado tгo longe ґ
continuou ele. ґ Й preciso amar o deserto, mas jamais confiar inteiramente
nele. Porque o deserto й uma prova para todos os homens: testa cada passo, e
mata quem se distrai.
Suas palavras lembravam as palavras do velho rei.
ґ Se os guerreiros chegarem, e sua cabeзa ainda estiver sobre o pescoзo
depois que o sol morrer, me procure ґ disse o estranho.
A mesma mгo que havia segurado a espada, empunhou um chicote. O cavalo
empinou de novo, levantando uma nuvem de poeira.
ґ Onde vocк mora? ґ gritou o rapaz, enquanto o cavaleiro se afastava.
A mгo com chicote apontou em direзгo ao sul.
O rapaz tinha encontrado o Alquimista.






Na manhг seguinte haviam dois mil homens armados entre as tamareiras de
Al-Fayoum. Antes que o sol chegasse ao topo do cйu, quinhentos guerreiros
apareceram no horizonte. Os cavaleiros entraram no oбsis pela parte norte;
parecia uma expediзгo de paz, mas haviam armas escondidas sobre os mantos
brancos. Quando chegaram perto da grande tenda que ficava no centro de
Al-Fayoum, puxaram as cimitarras e as espingardas. E atacaram uma tenda
vazia.
Os homens do oбsis cercaram os cavaleiros do deserto. Em meia hora
haviam quatrocentos e noventa e nove corpos espalhados pelo chгo. As
crianзas estavam no outro extremo do bosque de tamareiras, e nгo viram nada.
As mulheres rezavam por seus maridos nas tendas, e tambйm nгo viram nada.
Nгo fosse pelos corpos espalhados, o oбsis parecia viver um dia normal.
Apenas um guerreiro foi poupado, o comandante do batalhгo. De tarde ele
foi conduzido diante dos chefes tribais, que lhe perguntaram porque havia
rompido a Tradiзгo. O comandante disse que seus homens estavam com fome e
sede, exaustos por tantos dias de batalha, e haviam decidido tomar um oбsis
para poder recomeзar a luta.
O chefe tribal disse que sentia pelos guerreiros, mas a Tradiзгo jamais
pode ser rompida. A ъnica coisa que muda no deserto sгo as dunas, quando
sopra o vento.
Depois condenou o comandante a uma morte sem honra. Ao invйs do aзo ou
da bala de fuzil, ele foi enforcado numa tamareira tambйm morta. Seu corpo
balanзou com o vento do deserto.
O chefe tribal chamou o estrangeiro e lhe deu cinqьenta moedas de ouro.
Depois tornou a recordar a histуria de Josй no Egito, e pediu para que fosse
o Conselheiro do Oбsis.






Quando o sol se pфs por completo, e as primeiras estrelas comeзaram a
aparecer (nгo brilhavam muito, porque a lua cheia continuava), o rapaz andou
em direзгo ao sul. Havia apenas uma tenda, e alguns бrabes que passavam
diziam que o lugar era cheio de djins. Mas o rapaz sentou-se e esperou
durante muito tempo.
O Alquimista apareceu quando a lua jб estava alto no cйu. Trazia dois
gaviхes mortos no ombro.
ґ Aqui estou ґ disse o rapaz.
ґ Nгo devia estar ґ respondeu o Alquimista. ґ Ou sua Lenda Pessoal era
chegar atй aqui?
ґ Existe uma guerra entre os clгs. Nгo й possнvel cruzar o deserto.
O Alquimista desceu do seu cavalo, e fez um sinal para que o rapaz
entrasse com ele na tenda. Era uma tenda igual a todas as outras que havia
conhecido no oбsis ґ exceto a grande tenda central, que tinha o luxo dos
contos de fada. ґ Ele procurou os aparelhos e fornos de alquimia, mas nгo
encontrou nada. Havia apenas uns poucos livros empilhados, um fogгo para
cozinhar, e os tapetes cheios de desenhos misteriosos.
ґ Sente-se, que vou preparar um chб ґ disse o Alquimista. E comeremos
juntos estes gaviхes.
O rapaz suspeitou que eram os mesmos pбssaros que havia visto no dia
anterior, mas nгo disse nada. O Alquimista acendeu o fogo, e em pouco tempo
um delicioso cheiro de carne enchia a tenda. Era melhor que o perfume dos
narguilйs.
ґ Por que quis me ver? ґ disse o rapaz.
ґ Por causa dos sinais ґ respondeu o Alquimista ґ O vento me contou que
vocк viria. E que ia precisar de ajuda.
ґ Nгo sou eu. Й o outro estrangeiro, o Inglкs. Ele й que o estava
buscando.
ґ Ele tem que encontrar outras coisas antes de me encontrar. Mas estб
no caminho certo. Passou a olhar o deserto.
ґ E eu?
ґ Quando se quer uma coisa, todo o Universo conspira para que a pessoa
consiga realizar seu sonho ґ disse o Alquimista, repetindo as palavras do
velho rei. O rapaz entendeu. Outro homem estava no seu caminho, para
conduzi-lo atй sua Lenda Pessoal.
ґ Entгo vocк vai me ensinar?
ґ Nгo. Vocк jб sabe de tudo que precisa. Vou apenas lhe fazer seguir em
direзгo ao seu tesouro.
ґ Existe uma guerra entre os clгs. ґ repetiu o rapaz.
ґ Eu conheзo o deserto.
ґ Jб encontrei meu tesouro. Tenho um camelo, o dinheiro das lojas de
cristais, e cinqьenta moedas de ouro. Posso ser um homem rico na minha
terra.
ґ Mas nada disto estб perto das Pirвmides ґ disse o Alquimista.
ґ Tenho Fбtima. Й um tesouro maior que todo este que consegui juntar.
ґ Tambйm ela nгo estб perto das Pirвmides.
Comeram os gaviхes em silкncio. O Alquimista abriu uma garrafa e
derramou um lнquido vermelho no copo do rapaz. Era vinho, um dos melhores
vinhos que havia tomado em sua vida. Mas o vinho era proibido pela lei.


ґ O mal nгo й o que entra na boca do homem ґ disse o Alquimista. ґ O
mal й o que sai dela.
O rapaz comeзou a sentir-se alegre com o vinho. Mas o Alquimista lhe
inspirava medo. Sentaram-se do lado de fora da tenda, olhando o brilho da
lua, que ofuscava as estrelas.
ґ Beba e se distraia um pouco ґ disse o Alquimista, notando que o rapaz
comeзava a ficar cada vez mais alegre. ґ Repouse como um guerreiro sempre
repousa antes do combate. Mas nгo esqueзa que o seu coraзгo estб onde estб o
seu tesouro. E que seu tesouro precisa ser encontrado, para que tudo isto
que vocк descobriu no caminho possa fazer sentido.
"Amanhг venda seu camelo e compre um cavalo. Os camelos sгo
traiзoeiros: andam milhares de passos, e nгo dгo qualquer sinal de cansaзo.
De repente, porйm, ajoelham e morrem. Os cavalos vгo se cansando aos poucos.
E vocк poderб saber sempre o quanto pode pedir deles, ou a йpoca em que vгo
morrer".


Na noite seguinte o rapaz apareceu com um cavalo na tenda do
Alquimista. Esperou um pouco e ele apareceu, montado em seu animal, e com o
falcгo no ombro esquerdo.
ґ Mostre-me a vida no deserto ґ disse o Alquimista. ґ Sу quem acha
vida, pode encontrar tesouros.
Comeзaram a caminhar pelas areias, com a lua ainda brilhando sobre os
dois. "Nгo sei se vou conseguir encontrar vida no deserto", pensou o rapaz.
"Nгo conheзo ainda o deserto".
Quis virar-se e dizer isto ao Alquimista, mas tinha medo dele. Chegaram
ao lugar de pedras, onde o rapaz havia visto os gaviхes no cйu; entretanto,
tudo era silкncio e vento.
ґ Nгo consigo encontrar vida no deserto ґ disse o rapaz. Sei que ela
existe, mas nгo consigo encontrб-la.
ґ A vida atrai a vida ґ respondeu o Alquimista.
E o rapaz entendeu. Na mesma hora soltou as rйdeas de seu cavalo e ele
saiu livremente pelas pedras e areia. O Alquimista seguia em silкncio, e o
cavalo do rapaz andou por quase meia-hora. Jб nгo podiam mais ver as
tamareiras do oбsis, apenas a lua gigantesca no cйu, e as rochas brilhando
com a cor prata. De repente, num lugar onde jamais havia estado antes, o
rapaz notou que seu cavalo parava.
ґ Aqui existe vida ґ respondeu o rapaz ao Alquimista. ґ Nгo conheзo a
linguagem do deserto, mas meu cavalo conhece a linguagem da vida.
Desmontaram. O Alquimista nгo disse nada. Comeзou a olhar as pedras,
caminhando devagar. De repente, ele parou, e abaixou-se com todo cuidado.
Havia um buraco no chгo, entre as pedras; o Alquimista enfiou a mгo dentro
do buraco, e depois enfiou o braзo atй o ombro. Alguma coisa se mexeu lб
dentro, e os olhos do Alquimista ґ ele sу podia ver os olhos ґ se encolherem
de esforзo e tensгo. O braзo parecia lutar com o que estava dentro do
buraco. Mas num salto que assustou o rapaz, o Alquimista retirou o braзo e
ficou imediatamente de pй. Sua mгo trazia unia serpente agarrada pelo rabo.
O rapaz tambйm deu um salto, sу que para trбs. A cobra debatia-se sem
cessar, emitindo ruнdos e silvos que feriam o silкncio do deserto. Era uma
naja, cujo veneno podia matar um homem em poucos minutos.


"Cuidado com o veneno", chegou a pensar o rapaz. Mas o Alquimista havia
colocado a mгo no buraco, e jб devia ter sido mordido. Seu rosto, porйm,
estava tranqьilo. "O Alquimista tem duzentos anos", havia falado o Inglкs.
Jб devia saber como lidar com cobras no deserto.
O rapaz viu quando seu companheiro foi atй o cavalo e puxou a longa
espada em forma de meia-lua. Com ela, traзou um cнrculo no chгo e colocou a
cobra no meio. O animal aquietou-se imediatamente
ґ Pode ficar tranqьilo ґ disse o Alquimista. ґ Ela nгo vai sair dali. E
vocк descobriu a vida no deserto, o sinal que eu estava precisando.
ґ Por que isto era tгo importante?
ґ Porque as Pirвmides estгo cercadas de deserto.
O rapaz nгo queria ouvir falar nas Pirвmides. Seu coraзгo estava pesado
e triste, desde a noite anterior. Porque seguir em busca do seu tesouro,
significava ter que abandonar Fбtima.
ґ Vou guiб-lo pelo deserto ґ falou o Alquimista.
ґ Quero ficar no oбsis ґ respondeu o rapaz. ґ Jб encontrei Fбtima. E
ela, para mim, vale mais que o tesouro.
ґ Fбtima й uma mulher do deserto ґ disse o Alquimista. ґ Sabe que os
homens devem partir, para poderem voltar. Ela jб encontrou seu tesouro:
vocк. Agora espera que vocк encontre o que busca.
ґ E se eu resolver ficar?
ґ Serб o Conselheiro do Oбsis. Tem ouro suficiente para comprar muitas
ovelhas e muitos camelos. Vai casar-se com Fбtima e viverгo felizes o
primeiro ano. Aprenderб a amar o deserto e vai conhecer cada uma das
cinqьenta mil tamareiras. Perceberб como elas crescem, mostrando um mundo
que muda sempre. E irб cada vez entender mais os sinais, porque o deserto й
um mestre melhor que todos os mestres.
"No segundo ano vocк se lembrarб que existe um tesouro. Os sinais
comeзarгo a falar insistentemente sobre isto, e vocк tentarб ignorб-los.
Usarб seu conhecimento apenas para o bem-estar do oбsis e dos seus
habitantes. Os chefes tribais lhe agradecerгo por isto. Os seus camelos lhe
trarгo riqueza e poder.
"No terceiro ano os sinais continuarгo a falar sobre seu tesouro e sua
Lenda Pessoal. Vocк vai ficar noites e noites andando pelo oбsis, e Fбtima
serб uma mulher triste, porque fez com que seu caminho fosse interrompido.
Mas vocк lhe darб amor, e serб correspondido. Vocк vai se lembrar que ela
jamais pediu que ficasse, porque uma mulher do deserto sabe esperar seu
homem. Por isso nгo vai culpб-la. Mas vai andar muitas noites pelas areias
do deserto, e por entre as tamareiras, pensando que talvez pudesse ter ido
adiante, ter confiado mais no seu amor por Fбtima. Porque o que o manteve no
oбsis foi seu prуprio medo de nгo voltar nunca. E a esta altura, os sinais
lhe indicarгo que seu tesouro estб enterrado para sempre.
No quarto ano, os sinais o abandonarгo, porque vocк nгo quis ouvi-los.
Os Chefes Tribais irгo entender isto, e vocк serб destituнdo do Conselho. A
esta altura serб um rico comerciante, com muitos camelos e muitas
mercadorias. Mas passarб o resto dos seus dias vagando entre as tamareiras e
o deserto, sabendo que nгo cumpriu sua Lenda Pessoal, e que agora й tarde
demais para isto.
"Sem jamais compreender que o Amor nunca impede um homem de seguir sua
Lenda Pessoal. Quando isto acontece, й porque nгo era o verdadeiro Amor,
aquele que fala a Linguagem do Mundo".


O Alquimista desfez o cнrculo no chгo, e a cobra correu e desapareceu
entre as pedras. O rapaz lembrava o mercador de cristais que sempre quis ir
а Meca, e o Inglкs que buscava um Alquimista. O rapaz lembrava de uma mulher
que confiou no deserto, e o deserto um dia lhe trouxe a pessoa que desejava
amar.
Montaram em seus cavalos, e desta vez foi o rapaz que seguiu o
Alquimista. O vento trazia os ruнdos do oбsis, e ele tentava identificar a
voz de Fбtima. Naquele dia nгo tinha ido ao poзo por causa da batalha.
Mas esta noite, enquanto olhavam uma cobra dentro de um cнrculo, o
estranho cavaleiro com seu falcгo no ombro havia falado de amor e de
tesouros, das mulheres do deserto e da sua Lenda Pessoal.
ґ Vou com vocк ґ disse o rapaz. E imediatamente sentiu paz no seu
coraзгo.
ґ Partimos amanhг antes que o sol nasзa ґ foi a ъnica resposta do
Alquimista.




O rapaz passou a noite inteira em claro. Duas horas antes do amanhecer,
acordou um dos rapazes que dormia na sua tenda, e pediu para lhe mostrar
onde morava Fбtima. Saнram juntos, e foram atй lб. Em troca, o rapaz lhe deu
dinheiro para comprar uma ovelha.
Depois pediu que descobrisse onde Fбtima dormia, e que lhe acordasse e
dissesse que o rapaz a estava esperando. O jovem бrabe fez isto, e em troca
ganhou dinheiro para comprar outra ovelha.
ґ Agora deixe-nos a sуs ґ disse o rapaz ao jovem бrabe, que voltou а
sua tenda para dormir, orgulhoso de haver ajudado o Conselheiro do Oбsis; e
contente por ter dinheiro para comprar ovelhas.
Fбtima apareceu na porta da tenda. Os dois saнram para andar entre as
tamareiras. O rapaz sabia que era contra a Tradiзгo, mas isto nгo tinha
nenhuma importвncia agora.
ґ Vou partir ґ disse. E quero que saiba que vou voltar. Eu te amo
porque...
ґ Nгo diga nada ґ interrompeu Fбtima. ґ Ama-se porque se ama. Nгo hб
qualquer razгo para amar.
Mas o rapaz continuou:
ґ Eu te amo porque tive um sonho, encontrei um rei, vendi cristais,
cruzei o deserto, os clгs declararam guerra, e estive num poзo para saber
onde morava um Alquimista. Eu te amo porque todo o Universo conspirou para
que eu chegasse atй vocк.
ґ Os dois se abraзaram. Era a primeira vez que um corpo tocava no
outro.
ґ Voltarei ґ repetiu o rapaz.
ґ Antes eu olhava o deserto com desejo ґ disse Fбtima. Agora serб com
esperanзa. Meu pai um dia partiu, mas voltou para minha mгe, e continua
voltando sempre.
E nгo disseram mais nada. Andaram um pouco entre as tamareiras, e o
rapaz a deixou na porta da tenda.
ґ Voltarei como seu pai voltou para a sua mгe ґ disse.
Reparou que os olhos de Fбtima estavam cheios d'бgua.
ґ Vocк chora?


ґ Sou uma mulher do deserto ґ disse ela, escondendo o rosto. ґ Mas
acima de tudo, sou uma mulher.

Fбtima entrou na tenda. Daqui a pouco o sol ia aparecer. Quando o dia
chegasse, ela ia sair e fazer aquilo que havia feito durante tantos anos;
mas tudo havia mudado. O rapaz jб nгo estava mais no oбsis, e o oбsis nгo
teria mais o significado que tinha atй pouco tempo antes. Nгo seria mais o
lugar com cinqьenta mil tamareiras e trezentos poзos, onde os peregrinos
chegavam contentes depois de uma longa viagem. O oбsis, daquele dia em
diante, seria um lugar vazio para ela.
A partir daquele dia, o deserto ia ser mais importante. Iria olhar para
ele sempre, tentando saber qual estrela o rapaz estava seguindo em busca do
tesouro. Haveria de mandar seus beijos pelo vento, na esperanзa de que ele
tocasse o rosto do rapaz, e lhe contasse que estava viva, esperando por ele,
como uma mulher espera um homem de coragem, que segue em busca de sonhos e
tesouros. A partir daquele dia, o deserto ia ser apenas uma coisa: a
esperanзa de sua volta.







ґ Nгo pense no que ficou para trбs ґ disse o Alquimista, quando
comeзaram a cavalgar pelas areias do deserto. ґ Tudo estб gravado na Alma do
Mundo, e ali permanecerб para sempre.
ґ Os homens sonham mais com a volta do que com a partida ґ disse o
rapaz, que jб estava se acostumando de novo com o silкncio do deserto.
ґ Se o que vocк encontrou й feito de matйria pura, jamais apodrecerб. E
vocк poderб voltar um dia. Se foi apenas um momento de luz, como a explosгo
de uma estrela, entгo nгo vai encontrar nada quando voltar. Mas terб visto
uma explosгo de luz. E sу isto jб valeu a pena.
O homem falava em linguagem de alquimia. Mas o rapaz sabia que ele
estava se referindo а Fбtima.
Era difнcil nгo pensar no que havia ficado para trбs. O deserto, com
sua paisagem quase sempre igual, costumava encher-se de sonhos. O rapaz
ainda via as tamareiras, os poзos, e o rosto da mulher amada. Via o Inglкs
com seu laboratуrio, e o cameleiro que era um mestre e nгo sabia. "Talvez o
Alquimista jamais tenha amado", pensou o rapaz.
O Alquimista cavalgava na sua frente, com o falcгo nos ombros. O falcгo
conhecia bem a linguagem do deserto, e quando paravam, ele saнa do ombro do
Alquimista e voava em busca de alimento. No primeiro dia trouxe uma lebre.
No segundo dia trouxe dois pбssaros.
De noite, estendiam seus cobertores e nгo acendiam fogueiras. As noites
do deserto eram frias, e foram ficando escuras а medida que a lua comeзou a
diminuir no cйu. Durante uma semana andaram em silкncio, conversando apenas
sobre as precauзхes necessбrias para evitar os combates entre os clгs. A
guerra continuava, e o vento аs vezes trazia o cheiro adocicado de sangue.
Alguma batalha havia sido travada por perto, e o vento recordava ao rapaz
que havia a Linguagem dos Sinais, sempre pronta para mostrar o que seus
olhos nгo conseguiam ver.
Quando completaram sete dias de viagem, o Alquimista resolveu acampar
mais cedo do que de costume. O falcгo saiu em busca de caзa, e ele tirou o
cantil de бgua e ofereceu ao rapaz.
ґ Vocк agora estб quase no final da viagem ґ disse o Alquimista. ґ Meus
parabйns por haver seguido sua Lenda Pessoal.
ґ E vocк estб me guiando em silкncio ґ disse o rapaz. ґ Pensei que ia
me ensinar aquilo que sabe. Faz algum tempo que estive no deserto com um
homem que tinha livros de Alquimia. Mas nгo consegui aprender nada.
ґ Sу existe uma maneira de aprender ґ respondeu o Alquimista ґ Й
atravйs da aзгo. Tudo que vocк precisava saber, a viagem lhe ensinou. Falta
apenas uma coisa.
O rapaz quis saber o que era, mas o Alquimista manteve os olhos fixos
no horizonte, esperando pela volta do falcгo.
ґ Por que o chamam de Alquimista?
ґ Porque sou.


ґ E o que havia de errado com os outros alquimistas, que buscaram ouro
e nгo conseguiram?
ґ Buscavam apenas ouro ґ respondeu seu companheiro. ґ Buscavam o
tesouro de sua Lenda Pessoal, sem desejarem viver a prуpria Lenda.
ґ O que me falta saber? ґ insistiu o rapaz.
Mas o Alquimista continuou olhando o horizonte. Depois de algum tempo o
falcгo retornou com a comida. Cavaram um buraco e acenderam a fogueira
dentro dele, para que ninguйm pudesse ver a luz das chamas.
ґ Sou um Alquimista porque sou um Alquimista ґ disse ele, enquanto
preparavam a comida. ґ Aprendi a ciкncia de meus avуs, que aprenderam de
seus avуs, e assim atй a criaзгo do mundo. Naquela йpoca, toda a ciкncia da
Grande Obra podia ser escrita numa simples esmeralda. Mas os homens nгo
deram importвncia аs coisas simples, e comeзaram a escrever tratados,
interpretaзхes, e estudos filosуficos. Comeзaram tambйm a dizer que sabiam
melhor o caminho que os outros.
"Mas a Tбboa da Esmeralda continua viva atй hoje".
ґ O que estava escrito na Tбboa da Esmeralda? ґ quis saber o rapaz.
O Alquimista comeзou a desenhar na areia, e nгo demorou mais do que
cinco minutos. Enquanto ele desenhava, o rapaz lembrou-se do velho rei, e da
praзa onde haviam se encontrado um dia; parecia que tinham se passado muitos
e muitos anos.
ґ Isto estava escrito na Tбboa da Esmeralda ґ disse o Alquimista,
quando acabou de escrever.
O rapaz aproximou-se e leu as palavras na areia.
ґ Й um cуdigo ґ disse o rapaz, um pouco decepcionado com a Tбboa da
Esmeralda. ґ Parece com os livros do Inglкs.
ґ Nгo ґ respondeu o Alquimista. ґ Й como o vфo dos gaviхes; nгo deve
ser compreendida simplesmente pela razгo. A Tбboa da Esmeralda й uma
passagem direta para a Alma do Mundo.
"Os sбbios entenderam que este mundo natural й apenas uma imagem e uma
cуpia do Paraнso. A simples existкncia deste mundo й a garantia de que
existe um mundo mais perfeito que ele. Deus o criou para que, atravйs das
coisas visнveis, os homens pudessem compreender seus ensinamentos
espirituais, e as maravilhas de sua sabedoria. Isto й que eu chamo de Aзгo".
ґ Devo entender a Tбboa da Esmeralda? ґ perguntou o rapaz.
ґ "Talvez, se vocк estivesse num laboratуrio de Alquimia, agora seria o
momento certo para estudar a melhor maneira de entender a Tбboa da
Esmeralda. Entretanto, vocк estб no Deserto. Entгo mergulhe no deserto. Ele
serve para compreender o mundo tanto como qualquer outra coisa sobre a face
da terra. Vocк nem precisa de entender o deserto: basta contemplar um
simples grгo de areia, e verб nele todas as maravilhas da Criaзгo".
ґ Como faзo para mergulhar no deserto?
ґ Escute seu coraзгo. Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma
do Mundo, e um dia retornarб para ela.


Andaram em silкncio mais dois dias. O Alquimista estava muito mais
cauteloso, porque se aproximavam da zona de combates mais violentos. E o
rapaz procurava escutar seu coraзгo.


Era um coraзгo difнcil; antes estava acostumado a partir sempre, e
agora queria chegar a todo custo. Аs vezes, seu coraзгo ficava muitas horas
contando histуrias de saudades, outras vezes se emocionava com o nascer do
sol no deserto, e fazia o rapaz chorar escondido. O coraзгo batia mais
rбpido quando falava para o rapaz sobre o tesouro e ficava mais vagaroso
quando os olhos do rapaz se perdiam no horizonte sem fim do deserto. Mas
nunca estava em silкncio, mesmo que o rapaz nгo trocasse uma palavra com o
Alquimista.
ґ Por que temos que escutar o coraзгo? ґ perguntou o rapaz quando
acamparam aquele dia.
ґ Porque, onde ele estiver, й onde estarб o seu tesouro.
ґ Meu coraзгo й agitado ґ disse o rapaz. ґ Tem sonhos, se emociona, e
estб apaixonado por uma mulher do deserto. Ele me pede coisas e nгo me deixa
dormir muitas noites, quando penso nela.
ґ Й bom. Seu coraзгo estб vivo. Continue a ouvir o que ele tem para
dizer.
Nos trкs dias seguintes os dois passaram por alguns guerreiros, e viram
outros guerreiros no horizonte. O coraзгo do rapaz comeзou a falar sobre o
medo. Contava para o rapaz histуrias que tinha ouvido da Alma do Mundo,
histуrias de homens que foram em busca de seus tesouros e jamais o
encontraram. Аs vezes assustava o rapaz com o pensamento de que poderia nгo
conseguir o tesouro, ou poderia morrer no deserto. Outras vezes dizia para o
rapaz que jб estava satisfeito, que jб havia encontrado um amor e muitas
moedas de ouro.
ґ Meu coraзгo й traiзoeiro ґ disse o rapaz ao Alquimista, quando eles
pararam para descansar um pouco os cavalos. ґ Nгo quer que eu continue.
ґ Isto й bom ґ respondeu o Alquimista. ґ Prova que seu coraзгo estб
vivo. Й natural ter medo de trocar por um sonho tudo aquilo que jб se
conseguiu.
ґ Entгo, para que devo escutar meu coraзгo?
ґ Porque vocк nгo vai conseguir jamais mantк-lo calado. E mesmo que
finja nгo escutar o que ele diz, ele estarб dentro do seu peito, repetindo
sempre o que pensa sobre a vida e o mundo.
ґ Mesmo que ele seja traiзoeiro?
ґ A traiзгo й o golpe que vocк nгo espera. Se vocк conhecer bem seu
coraзгo, ele jamais conseguirб isto. Porque vocк conhecerб seus sonhos e
seus desejos, e saberб lidar com eles.
"Ninguйm consegue fugir do seu coraзгo. Por isso й melhor escutar o que
ele fala. Para que jamais venha um golpe que vocк nгo espera".

O rapaz continuou a escutar seu coraзгo, enquanto caminhavam pelo
deserto. Passou a conhecer suas artimanhas e seus truques, e passou a
aceitб-lo como era. Entгo o rapaz deixou de ter medo, e deixou de ter
vontade de voltar, porque certa tarde o seu coraзгo lhe disse que estava
contente. "Mesmo que eu reclame um pouco", dizia seu coraзгo, "й porque sou
um coraзгo de homem, e os coraзхes de homens sгo assim. Tкm medo de realizar
seus maiores sonhos, porque acham que nгo o merecem, ou nгo vгo
consegui-los. Nуs, os coraзхes, morremos de medo sу de pensar em amores que
partiram para sempre, em momentos que poderiam ter sido bons e que nгo
foram, em tesouros que poderiam ter sido descobertos e ficaram para sempre
escondidos na areia. Porque quando isto acontece, terminamos sofrendo
muito".


ґ Meu coraзгo tem medo de sofrer ґ disse o rapaz para o Alquimista, uma
noite em que olhavam o cйu sem lua.
ґ Diga para ele que o medo de sofrer й pior do que o prуprio
sofrimento. E que nenhum coraзгo jamais sofreu quando foi em busca de seus
sonhos, porque cada momento de busca й um momento de encontro com Deus e com
a Eternidade.
"Cada momento de busca й um momento de encontro", disse o rapaz ao seu
coraзгo. "Enquanto procurei meu tesouro, todos os dias foram dias luminosos,
porque eu sabia que cada hora fazia parte do sonho de encontrar. Enquanto
procurei este meu tesouro, descobri no caminho coisas que jamais teria
sonhado encontrar, se nгo tivesse tido a coragem de tentar coisas
impossнveis aos pastores".
Entгo seu coraзгo ficou quieto por uma tarde inteira. De noite, o rapaz
dormiu tranqьilo, e quando acordou, o seu coraзгo comeзou a lhe contar as
coisas da Alma do Mundo. Disse que todo homem feliz era um homem que trazia
Deus dentro de si. E que a felicidade poderia ser encontrada num simples
grгo de areia do deserto, como o Alquimista havia falado. Porque um grгo de
areia й um momento da Criaзгo, e o Universo demorou milhares de milhхes de
anos para criб-lo. "Cada homem na face da Terra tem um tesouro que estб
esperando por ele", disse seu coraзгo. Nуs, os coraзхes, costumamos falar
pouco destes tesouros, porque os homens jб nгo querem mais encontrб-los. Sу
falamos dele para as crianзas. Depois deixamos que a vida encaminhe cada um
em direзгo ao seu destino. Mas, infelizmente, poucos seguem o caminho que
lhes estб traзado, e que й o caminho da Lenda Pessoal, e da felicidade.
Acham o mundo uma coisa ameaзadora ґ e por causa disto o mundo se torna uma
coisa ameaзadora.
"Entгo nуs, os coraзхes, vamos falando cada vez mais baixo, mas nгo nos
calamos nunca. E torcemos para que nossas palavras nгo sejam ouvidas: nгo
queremos que os homens sofram porque nгo seguiram seus coraзхes".
ґ Por que os coraзхes nгo contam aos homens que devem continuar
seguindo seus sonhos? ґ perguntou o rapaz ao Alquimista.
ґ Porque, neste caso, o coraзгo й o que sofre mais. E os coraзхes nгo
gostam de sofrer.
O rapaz entendeu seu coraзгo a partir daquele dia. Pediu que nunca mais
o deixasse. Pediu que, quando estivesse longe de seus sonhos, o coraзгo
apertasse no peito e desse o sinal de alarme. O rapaz jurou que sempre que
escutasse este sinal, tambйm o seguiria.
Naquela noite conversou tudo com o Alquimista. E o Alquimista entendeu
que o coraзгo do rapaz havia voltado para a Alma do Mundo .
ґ O que faзo agora? ґ perguntou o rapaz.
ґ Siga em direзгo аs Pirвmides ґ disse o Alquimista. ґ E continue
atento aos sinais. Seu coraзгo jб й capaz de lhe mostrar o tesouro.
ґ Era isto que estava faltando saber?
ґ Nгo. ґ respondeu o Alquimista. ґ O que estб faltando saber й o
seguinte:
"Sempre antes de realizar um sonho, a Alma do Mundo resolve testar tudo
aquilo que foi aprendido durante a caminhada. Ela faz isto nгo porque seja
mб, mas para que possamos, junto com o nosso sonho, conquistar tambйm as
liзхes que aprendemos seguindo em direзгo a ele. Й o momento em que a maior
parte das pessoas desiste. Й o que chamamos, em linguagem do deserto, de
`morrer de sede quando as tamareiras jб apareceram no horizonte' ".